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Opinião|Poderia ter sido diferente

Sem investimento afetivo na comunidade escolar tragédias como a de Suzano se repetirão

Atualização:

A tragédia na Escola Estadual Professor Raul Brasil, em Suzano, poderia ter sido evitada ou, ao menos, ver reduzida as suas nefastas consequências. Isso se a educação paulista fosse tratada, na prática e rotineiramente, como dela se cuida no discurso.

Assim que assumi a Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, em janeiro de 2016, verifiquei o lamentável estágio em que se encontravam as relações entre os profissionais da educação e o governo, entre aqueles e o alunado, impregnadas de ressentimento e até de ira. O sistemático abandono do investimento em afetividade, em cultivo de empatia, em paciência para ouvir e para dialogar produziu um ambiente de estranhamento e de desconfiança.

Era e é comum ver alunos quebrando carteiras e vidraças, queimando cortinas, entupindo vasos sanitários com papel higiênico pago pelo povo. Violência dentro e fora da escola, falta de respeito ao professor e aos demais funcionários, desapreço ao que a escola sempre significou: lugar de acolhimento, de conquista de amizades duradouras, de convívio alegre e feliz. Tudo propício ao aprendizado e ao crescimento como pessoa, até se atingir a plenitude possível - um dos objetivos da educação, ao lado da qualificação para o trabalho e a capacitação para o exercício da cidadania.

A intensificação de sentimentos negativos também derivou da falta de reajuste salarial, sob o argumento de verdadeira e gravíssima crise econômico-financeira, resultante de debacle moral e ética. Justificável explicação, mas nunca transmitida diretamente às lideranças sindicais, com alguma razão exasperadas pelo longo período de abstinência nas readequações da já insuficiente remuneração.

Experiências bem-sucedidas no campo da mediação e conciliação dentro da escola foram obstruídas sob idêntico argumento. O “professor mediador” praticamente foi eliminado, em favor da economia. Projeto de aproximação da Polícia Militar da escola foi estruturado, submetido a instâncias superiores e descartado. Eliminou-se a assessoria militar que já havia sido desativada, mas teria sido útil na implementação de um projeto construtor de um clima de segurança e de confiança da comunidade escolar em relação a esta instituição tão eficiente e pouco reconhecida: a Polícia Militar do Estado de São Paulo.

O projeto Escola da Família, que propiciava a aproximação entre alunos, professores, universitários e o núcleo parental da comunidade, não mereceu estímulo da administração superior. Nem se envolveram nele as demais secretarias, conforme se acenara na crise causada pela chamada “reorganização”, que chegou à sociedade e à mídia como “fechamento de escolas”.

Se essas providências tivessem sido adotadas, talvez não houvesse a irreparável perda de vidas em Suzano. A escola pública tem razão ao se considerar desprestigiada. Não basta reservar R$ 30 bilhões por ano para que a velha e arcaica estrutura continue a funcionar. Escola é comunidade integrada por gente, por seres humanos que necessitam de atenção, de carinho, de proximidade com os detentores de poder.

Fez-se o que se pôde, como ao enfrentar a chamada “máfia da merenda” com o maravilhoso programa Cozinheiros da Educação, dádiva da festejada chef Janaína Rueda, que não apenas idealizou, mas concretizou essa fórmula de oferecer ao aluno alimento nutritivo, saboroso e sedutor. Tudo a partir do ingrediente que ela levou à cozinha escolar: o amor.

Convenceu-se bom número de parceiros a participarem da “adoção afetiva”, eis que a rede pública não necessita apenas de dinheiro, mas de carinho. Quantos exemplos eloquentes de verdadeiro milagre numa estrutura superada, mas que oferecia resultados mágicos, desde que viessem pessoas munidas de ternura, algo praticamente ausente de boa parte das 5,4 mil escolas bandeirantes.

Trabalhar com as lideranças estudantis, revigorar os grêmios, promover concursos que atraem a criatividade, a engenhosidade e o espírito inovador de crianças aptas a transformar o mundo mostraram-se ferramentas hábeis a conter embates até cruentos, infeliz rotina em tantas unidades escolares.

Quando acontece o terror dentro do espaço da educação, tenta-se invocar a necessidade de professores e serventes andarem armados. Não vejo isso como solução. Por mim, inimigo de arma de fogo, algo que é destinado a matar não deveria sequer ser fabricado. Há fórmulas mais inteligentes de neutralizar alguém violento.

Isso nem é efeito exclusivo da violência na internet, embora com ela eu também não confraternize. Há todo um conjunto de circunstâncias, mas elas convergem para o fato de que não estamos conseguindo fazer da escola um lugar feliz. Aqueles ex-alunos odiavam o lugar onde, presumivelmente, teriam adquirido conhecimento para “vencer na vida”. Na volúpia das avaliações, no adestramento da criança para decorar conteúdos, esquecemo-nos de que seres humanos precisam ser despertados para suas vocações, não para saber responder o que o Google faz melhor do que eles.

Se não houver investimento afetivo na comunidade escolar, tragédias se repetirão. Respeitemos e reverenciemos os bons professores, os bons diretores, os devotados profissionais da educação. Abramos espaço para o diálogo permanente com a família, com a comunidade do entorno e com o alunado. Ele tem o direito de ser ouvido e opinar sobre o seu projeto de vida. O ensino precisa atuar nas competências socioemocionais, muito mais importantes para a geração que enfrenta a 4.ª Revolução Industrial do que as competências cognitivas.

Ninguém percebeu que a informação está disponível como nunca esteve e sua conversão em conhecimento e, posteriormente, em sabedoria precisa de estratégias que não estão no foco da educação brasileira? Tivéssemos - como educadores, como pais, como cidadãos - percebido isso há mais tempo, talvez evitássemos morticínios que podem acontecer novamente.

*DOCENTE NA UNINOVE, FOI SECRETÁRIO ESTADUAL DA EDUCAÇÃO DE SÃO PAULO ENTRE JANEIRO DE 2016 E ABRIL DE 2018