EXCLUSIVO PARA ASSINANTES
Foto do(a) coluna

Professor de Filosofia na UFRGS, Denis Lerrer Rosenfield escreve quinzenalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|Política e teto dos gastos públicos

Quando não há mais limites orçamentários, a própria noção de limite político torna-se fluida, sinalizando que nem a Constituição teria de ser obedecida.

Atualização:

A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) dos Precatórios, também dita PEC Fura Teto, tem um forte componente político, complementar ao da responsabilidade fiscal, garantida em lei e que deveria ser assumida por qualquer governante sensato. E governante sensato significa alguém comprometido com a ideia de coisa pública, de bem-estar social de todos os brasileiros. O problema, hoje, consiste em que até a sensatez do ponto de vista político tornou-se um bem raro.

Quando a Lei do Teto de Gastos Públicos foi instituída, ela implicava politicamente que houvesse uma redistribuição dos dispêndios e compromissos estatais nos ministérios, tanto internamente do ponto de vista individual quanto em relação aos demais. Ou seja, sua consequência deveria ter sido que os atores políticos discutissem o destino dos recursos públicos tendo como parâmetro limites que, extrapolados, teriam como consequência a piora das contas públicas, repercutindo em mais inflação, menor investimento e menos bem-estar social no médio e no longo prazos.

Os gastos ministeriais não podem ser considerados como se estivessem congelados para sempre, como se alguma redução significasse menor atenção para uma determinada área. Gastos públicos deveriam ser avaliados constantemente, de modo que projetos ineficazes ou caducos seriam substituídos por outros novos e inovadores. Cada ministério não deveria considerar a sua “porção” como fixa, não sendo submetida a nenhum tipo de medição baseada em seu mérito. Eis por que, inclusive, destinações obrigatórias para determinadas áreas deveriam ser abolidas, uma vez que levam à inércia e a uma esdrúxula noção de “direito adquirido”, como se estivessem de per se justificadas socialmente.

Quando surge uma nova demanda social, como esta decorrente da pandemia, deveria ser obrigatória uma avaliação de todos os projetos sociais em execução e previstos, dando lugar a novos espaços dentro do Orçamento existente. Alguma medida porventura emergencial deveria ser simplesmente isto, emergencial e com prazo determinado, estabelecendo uma compensação futura. O próximo governo não deveria simplesmente pagar a sua conta.

Em vez disso, o atual governo prefere deixar o Orçamento engessado, não mexendo com nenhum privilégio nem fatias dos recursos assegurados, e parte para romper o teto, destruindo, assim, a própria noção de responsabilidade fiscal e de orçamento estatal. A política se faria, então, extra-teto, sem nenhum compromisso com o bem público, coletivo. Uma política intrateto seria uma política voltada para o convencimento, para o diálogo, para avalições sistemáticas dos gastos públicos, para novas propostas, logo, comprometida com o bem comum.

Uma política extra-teto, por sua vez, seria uma política embasada na desmedida, na irresponsabilidade e, em consequência, no populismo. Gasta-se mais do que se pode e o futuro da Nação fica, então, hipotecado. As gerações futuras pagarão o preço dos que não quiseram assumir as suas responsabilidades de governantes. Na verdade, propostas e ideias nem são mais debatidas, mas a única preocupação consiste em como se pode gastar mais.

O recente espetáculo Fura Teto tem, ademais, como consequência um atrelamento da política parlamentar e partidária aos ganhos extra-teto sob a forma de emendas e cargos que visariam a assegurar a reeleição do atual mandatário por meio do Auxílio Brasil. A política, nesse sentido, não se faria na disputa pelo Orçamento, mas em seu desrespeito, abandonando qualquer noção de bem comum e tendo como único mote o bem particular de determinados parlamentares e grupos políticos.

Um governante não seria avaliado pelo que teria feito no interior de uma administração pública responsável, mas pela “justificativa” utilizada para não ter nenhum compromisso com os gastos do Estado. No caso, o objetivo eleitoral é explícito e tem como parceiros deputados e senadores voltados apenas para suas próprias reeleições e privilégios. Eis mesmo por que se criou a figura, completamente despropositada, do dito “orçamento secreto”, como se o sigilo dos seus autores fosse garantia de sua impunidade.

É propriamente uma aberração que parlamentares inventem um orçamento próprio, por eles controlado, com a anuência da Presidência da República, empenhada somente com seus ganhos eleitorais. A política se dilui, evapora, neste arremedo de si mesma. A partir do momento em que não há mais limites orçamentários, a própria noção de limite político torna-se fluida, sinalizando que nem a Constituição precisaria ser obedecida.

Não é, nesse sentido, casual que a PEC Fura Teto seja também denominada PEC dos Precatórios, que deveria ser mais bem chamada de PEC de desrespeito aos compromissos assumidos pelo Estado e legalmente estabelecidos. Um calote dos precatórios significa o rompimento mesmo da noção política e econômica de contrato.

*

PROFESSOR DE FILOSOFIA NA UFGRS. E-MAIL: DENISROSENFIELD@TERRA.COM.BR

Opinião por Denis Lerrer Rosenfield
Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.