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Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras e ex-ministro da Justiça, Miguel Reale Júnior escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|Prevenindo o golpe

Presidente só pensa em reeleição e em fazer seu sucessor um dos filhos, o Bolsonaro II

Atualização:

O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) sentiu-se no dever de prelecionar sobre democracia diante das diatribes antidemocráticas de Bolsonaro. De seu discurso cabe destacar o recado ao presidente de que o povo brasileiro jamais aceitará ser qualquer crise solucionada mediante mecanismos fora dos limites da Constituição.

Bolsonaro, desgastado com o desgoverno no combate à covid-19, que deixa o rastro de mais de 560 mil mortos, abriu três frentes na busca de permanecer no poder: entregou o governo ao PP para evitar o impeachment; busca financiar novo Bolsa Família para, via assistencialismo, comprar popularidade entre a população pobre; e alimenta sua base fanática com a narrativa do voto impresso para poder contestar futura derrota eleitoral, impondo-se presidente contra uma “eleição perdida pela fraude”.

Os três caminhos trazem riscos consideráveis ao País. O PP, Partido Progressista, é a antiga Arena, depois PDS e origem de tramoias conhecidas com o PT, a começar da Petrobrás – basta lembrar a sempre emblemática figura de José Janene (PP-PR), réu no processo do mensalão, morto em 2010, a quem se atribuiu a organização da corrupção na estatal, fazendo as cúpulas das siglas envolvidas serem beneficiadas diretamente. Conforme noticia o jornal Gazeta do Povo (www.gazetadopovo.com.br/vida-publica/janene-e-apontado-como-mentor-de-esquema-de-corrupcao-na-petrobras-eguel8pxx4qp4g4qf0w7sxidq/), “Janene transformou a corrupção no varejo em esquema de organização partidária”.

O presidente justifica ter dado a chave do governo ao PP porque ele mesmo vem de lá, partido do qual por muito tempo foi membro. Como se vê, apresenta ficha de vida pregressa contrária à sua proposta moralizante: “Sempre fui do Centrão”.

A outra vertente não passa de tentativa de compra de popularidade, explorando a miséria que seu governo aumentou no País, para cooptar apoio mediante a dádiva de R$ 400 por mês com novo Bolsa Família, em assistencialismo que nada consolida no plano econômico, a não ser um calote no pagamento de precatórios – “pago assim que puder” –, driblando o teto de gastos, com riscos para o ajuste fiscal.

O terceiro caminho consiste na narrativa que vem construindo de haver uma trama urdida para eleger Lula por meio de fraude, sem voto auditável, sendo agentes dessa tramoia o STF e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), agora fulanizando o ataque na pessoa do ministro Luís Roberto Barroso, a quem chama de imbecil, arrogante, defensor do Battisti.

Em tão ridícula quanto irresponsável live, o presidente acusou, reconhecendo não ter provas, haver fraude nas urnas eletrônicas, chegando a se valer do auxílio de astrólogo que faz acupuntura em árvores.

Não bastou todos os ex-presidentes do Tribunal Superior Eleitoral firmarem declaração assegurando haver, tanto ontem como hoje, segurança, transparência e auditabilidade do sistema.

Não bastou o ministro Luís Roberto Barroso dizer que ameaçar a realização de eleições é uma “conduta antidemocrática” e solicitar ao Supremo Tribunal que averigue se o presidente comete crime ao divulgar notícias falsas relativas ao processo eleitoral.

Não bastou o ministro Luis Felipe Salomão, corregedor-geral do TSE, instaurar inquérito para apurar se houve abuso do poder econômico e político, uso indevido dos meios de comunicação social, corrupção, fraude, condutas vedadas a agentes públicos e propaganda extemporânea, relativamente aos ataques de Bolsonaro contra o sistema eletrônico de votação e a legitimidade das eleições 2022.

Depois de todos esses reveses, o presidente voltou à carga em ataque frontal às urnas eletrônicas e ao ministro Luís Roberto Barroso na terça-feira 3/8: “ Está a serviço de quem?”. E em face da abertura de investigação pelo STF considerou que o antídoto estaria fora da Constituição.

Nada segura o presidente em sua campanha contra a urna eletrônica, dizendo à rádio Jovem Pan que joga nas quatro linhas da Constituição bem como fora delas: é o golpe.

Bolsonaro, desde o primeiro dia de mandato, não pensou senão em reeleição e em poder indicar como sucessor, terminado o segundo mandato, um dos filhos, o Bolsonaro II. Assim, é desesperadora para ele a probabilidade de sequer ir para o segundo turno em 2022, dada sua crescente rejeição. A farsa do voto impresso é o que resta para negar legitimidade à eleição perdida e zerar o jogo democrático. Forma de superar a derrota é não a aceitar como fruto de fraude, como tentou Donald Trump.

Dando realidade à fala do presidente do STF, a sociedade civil já reage e importantes figuras, economistas, empresários, intelectuais, líderes religiosos, por iniciativa do Centro de Debates de Políticas Públicas, lançaram, na última quinta-feira, manifesto proclamando que o Brasil terá eleições e o seu resultado será respeitado. O Movimento Pacto pela Democracia criará comitê plural de salvaguarda da democracia, para proteger a legitimidade das eleições e a observância da Constituição. É bom prevenir, pois poderá ser impossível remediar.

ADVOGADO, PROFESSOR TITULAR SÊNIOR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS, FOI MINISTRO DA JUSTIÇA

Opinião por Miguel Reale Júnior
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