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Opinião|Proximidade com os argentinos

Tal como eles, nós, brasileiros, vivemos fora do tempo, à procura do presente

Atualização:

Como peixes, ignorando as correntes do mar em que estão imersos, a maioria dos homens segue pelos caminhos da História sem perceber para onde está sendo levada. Resulta sempre mais fácil perceber a direção e a velocidade do movimento para quem está do lado de fora do que para quem está do lado de dentro.

Essas reflexões foram retiradas das memórias do diplomata francês Jean Monnet e se referem à formação da Europa moderna. Mas parecem retratar perfeitamente a surpresa com que brasileiros receberam no final de junho a notícia de um acordo entre o Mercosul e a União Europeia. Preocupados por crises conjunturais causadas por oscilações cambiais e acordos automotivos, não nos demos conta de que os tratados, protocolos, cartas de intenção e o restante da infindável papelada diplomática que muitos imaginavam acumulando pó nos arquivos das chancelarias, em décadas de esforços idealistas, ganharam vida e se tornaram algo real.

Ao mesmo tempo, é bem verdade, surgem ameaças de mais um retrocesso causado pela vontade do presidente Bolsonaro de se imiscuir na política interna da Argentina. Ao se oferecer como mediador, o presidente Uruguaio, Luis Lacalle Pou, dá uma bem-vinda demonstração de bom senso. É também curioso que a iniciativa pacificadora venha do Uruguai, que quando ainda se chamava Província Cisplatina ou Banda Oriental, no início do século 19, foi o centro de um período extremamente conturbado na região do Prata.

O Brasil tomou parte ativa nos acontecimentos daquela época. Tropas nossas entraram em Montevidéu em 3 de maio de 1854, em socorro do aliado Venâncio Flores, e também combateram na Argentina, participando militarmente da derrubada de Juan Manoel de Rosas. Mas não lutávamos contra países, e sim contra e a favor de facções, num jogo de alianças que perdeu o interesse. É como se isso tivesse acontecido em outra dimensão. De qualquer maneira, não é possível guardar rancor por entreveros militares iniciados sob dom João VI e findos quando o imperador Pedro II era um rapaz de 26 anos.

À exceção da terrível Guerra do Paraguai, de má memória, pode-se classificar a América do Sul como uma região internacionalmente tranquila. A violência no continente incluí a mortandade da conquista e da escravidão, convulsões, a miséria de muitos, mas fomos poupados, depois da independência, dos conflitos de grandes proporções, das verdadeiras marés de sangue do continente europeu.

Por todas essas razões, o desafio para os que se interessam pela aproximação latino-americana nunca esteve em promover a reconciliação, mas em lançar pontes sobre os abismos de ignorância que nos separam. Darcy Ribeiro notou que a unidade geográfica do continente nunca funcionou como fator de unificação entre povos que sempre coexistiram sem conviver. “Vivemos como se fôssemos um arquipélago de ilhas que se comunicam por mar e pelo ar (...). As próprias fronteiras latino-americanas, correndo ao longo da cordilheira desértica, ou da selva impenetrável, isolam mais do que comunicam e raramente possibilitam uma convivência intensa.”

Houve, é verdade, alguma tensão militar entre Brasil e Argentina nos tempos de Getúlio e Perón e, mais recentemente, com a moda da geopolítica bancada por Golbery de Couto e Silva, logo substituída pelas teorias das fronteiras ideológicas. Tudo passou com o fim da breve e desastrosa Guerra das Malvinas, em 1982, acarretando o fim da ditadura argentina, coincidindo com a volta do poder civil também no Brasil. Os presidentes Raúl Alfonsín e José Sarney entenderam-se logo no problema nuclear - o maior de todos -, lançando as bases para a criação da Agência Brasileiro-Argentina de Contabilidade e Controle de Materiais Nucleares (Abacc), organismo binacional conhecido internacionalmente pelo extraordinário êxito alcançado em assegurar que os materiais presentes em todas as atividades nucleares não seriam desviados para a fabricação de bombas atômicas.

Se a excepcional competência técnica dos funcionários, brasileiros e argentinos, foi essencial para o bom desempenho da agência, isso seguramente não seria bastante se não tivessem por trás o clima de entendimento entre os dois países. Essa, ao menos, é a impressão que os funcionários trazem na volta das frequentes conferências que são convidados a pronunciar em países do Oriente Médio e outras regiões conturbadas, onde uma agência como a Abacc ainda representa um ideal impossível.

Se deu certo entre e Argentina e Brasil, talvez seja porque no fundo nossas diferenças não excluem a mútua admiração. Não compreendemos o apego dos nossos vizinhos à figura de Juan Domingo Perón e de seus apoiadores da extrema esquerda à extrema direita. Mas quando vamos a Buenos Aires invejamos os dançarinos de tango, os cafés, as magníficas livrarias e os cinco Prêmios Nobel. Eles não compreendem a miséria e a violência das favelas. Mas invejam a alegria musical dos brasileiros.

Mempo Giardinelli comenta: “Se a música expressa o espírito do povo, talvez seja por isso que tantos argentinos invejam a alegria dos brasileiros, (...) muitos pensam que o tango é apenas um ritmo amargo (...) um sentimento triste que se dança”. José Eduardo Abadi e Diego Mileo, autores de outro livro sobre a alma argentina, No Somos Tan Buena Gente, evocam uma espécie de frustração forte, de esperança esgotada, de perda de ilusões e de sonhos não realizados.

Mas qual é o sonho não realizado dos argentinos? É uma pergunta sem resposta, mas que todos entendem, e não apenas pela sua eventual aplicação a esse ou aquele episódio de nossa vida pessoal, mas porque toda nação tem suas oportunidades perdidas, suas frustrações, seus sonhos não realizados. E o Brasil não é exceção. Uma de nossas maiores frustrações nos aproxima curiosamente dos argentinos. Como os argentinos, nós, brasileiros, também vivemos fora do tempo, eles com os olhos fitos num passado que não voltará, nós num futuro que tal qual a linha do horizonte parece se afastar quando nos aproximamos. Ambos vivemos à procura do presente.

* JORNALISTA E ESCRITOR

Opinião por Pedro Cavalcanti