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Opinião|Querem arrancar uma flor do jardim das liberdades

Lembre-se: hoje os alvos são acusados e condenados, amanhã podemos ser todos nós

Atualização:

Nunca esteve tão presente o alerta do poeta brasileiro Eduardo Alves da Costa ao homenagear o poeta russo Vladimir Maiakovski, no poema No caminho com Maiakovski, como nos dias de hoje. Disse ele algo como: eles retiram uma flor, no dia seguinte outras, em seguida pisam e destroem o jardim e por fim invadem as nossas casas. Se nós contemplarmos inertes esses avanços, ao despertarmos será tarde demais. A omissão se apresentará tão grave quanto a agressão.

Embora tenha citado um escritor russo, esclareço não ser comunista, como podem entender os zelosos direitistas de plantão. Em verdade o comunismo só existe hoje como invencionice justificadora dos que querem arrancar flores.

É preciso logo realçar que o projeto anticrime, ao contrário do apregoado, não é um instrumento de combate à criminalidade. Não evita o crime e, portanto, não protege os valores sociais, que deveriam ser resguardados pelo ordenamento jurídico, em especial pelo Direito Penal. Apenas endurece as punições e dificulta a defesa, nada mais. Tanto a instauração de um processo quanto as penas por ele impostas se dão depois da prática delitiva. Portanto, é uma mentira afirmar que estejam combatendo o crime, pois em verdade esse já ocorreu.

O argumento de ser o projeto um instrumento contra a prática de delitos serve apenas para passar a ideia de estar havendo um combate efetivo à criminalidade. Mas a ideia é falsa. Infelizmente, está arraigada a noção da punição como meio hábil de impedir o crime. O projeto estaria atuando para evitar o delito se contivesse mecanismos que atuassem em face das causas do crime, e não dos seus efeitos.

Note-se que o discurso tido como contrário ao crime faz apologia da punição e da prisão como única resposta ao delito, sem jamais pregar o combate aos fatores desencadeadores da criminalidade. Parece que punir é preciso, evitar o delito não é.

Pretende-se com o projeto dificultar o exercício de direitos, incluídos os constitucionais; restringir os efeitos dos recursos, permitindo desde pronto a execução das decisões recorridas; obstruir o exercício de direitos e de prerrogativas por advogados, em detrimento da defesa dos acusados, dentre outras distorções. Tudo no afã de punir mais e mais, sem nenhuma consideração pelo crime cometido ou pela individualização da pena. Ademais, não se leva em conta o pernicioso sistema penitenciário, que aumenta o grau de periculosidade de quem sai do cárcere.

Note-se, ainda, que o projeto, coerente com o discurso oficial, facilita, por meio do instituto da legítima defesa, a ação agressiva de policiais, que em circunstâncias factuais estarão impunes.

A questão do projeto não se restringe ao debate no campo de duas posições diversas: de um lado, a que considera que o sistema penal deve ter como escopo exclusivo punir, sem nenhuma outra consideração sobre o fenômeno criminal. No lado oposto está o entendimento de que todo o arcabouço penal deve estar voltado não só para a punição, mas também para a preservação da dignidade e dos direitos constitucionais e legais do acusado.

Na realidade, o projeto extrapola os limites do sistema penal. Ele traz no seu bojo a semente de um Estado autoritário, absolutamente incompatível com o Estado Democrático de Direito. Nesse sentido, os riscos para a sociedade brasileira são reais, uma vez que todo cidadão poderá ser atingido no exercício de seus direitos e prerrogativas.

A primeira investida repercute menos, pois coloca o crime como escudo. É mais fácil atingir as prerrogativas do acusado que do cidadão sobre quem nada paira.

No entanto, as restrições são gerais, virão, aliás, já estão presentes, veja-se as que já atingem a advocacia e a imprensa, em doses homeopáticas. O ensino, o meio ambiente, as artes, a ciência, os direitos humanos, o terceiro setor e todas as demais atividades imprescindíveis para uma sociedade plural, evoluída, justa, desprovida de preconceito, menos desigual, não estão sendo estimulados. A respeito desses valores não há projetos construtivos. Ao contrário, tais atividades estão sendo vítimas de restrições, quando não se tenta aniquilar o que já foi realizado.

Todas as medidas do projeto servem para o início da destruição do jardim das liberdades sob a alegação de se estar combatendo o crime. Trata-se de falácia que objetiva enganar uma sociedade esquecida de ser o crime um fato social e humano.

Não se olvide, portanto, que o banco dos réus não é apenas para os réus confessos. Nele poderão sentar-se inocentes, ou mesmo culpados, mas portadores de uma responsabilidade menor que aquela que lhes é imputada. Nesse momento todos necessitarão dos princípios e direitos que agora se pretende retirar. Uma vez retirados, teremos a pena como instrumento de puro castigo e de pura vingança.

Está provado ser falsa a ideia de que a prisão inibe a prática de novos crimes. O mundo todo já reconheceu a ineficácia da pena de prisão como fator de inibição de cometer delitos. Basta que se diga que no Brasil, dos quase 800 mil presos, por volta de 70% já estiveram nas cadeias. A dolorosa experiência do cárcere não os inibiu. Há um efeito sinistro nas punições: quanto mais elas aumentam, mas crescem os índices de criminalidade.

O projeto é o primeiro passo em direção ao jardim que se quer destruir. Jardim plantado e cultivado com grande esforço e sacrifício. Lá estão sobrevivendo as flores da Constituição, e com elas as das liberdades individuais e das franquias democráticas. Nesse jardim foram lançadas também as sementes de um País menos desigual e mais justo. Um dia, se deixarem, essas sementes germinarão.

Lembre-se, hoje os alvos são acusados e condenados, amanhã poderemos ser todos nós.

*ADVOGADO CRIMINAL

Opinião por Antonio Cláudio Mariz de Oliveira