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Opinião|Razão de Estado versus liberdade de informação

O poder público não pode subordinar o interesse público a seus interesses de ocasião

Atualização:

As razões do veto do presidente da República às normas da nova Lei de Licitações, que preveem a publicação de extratos de edital de convocação de procedimentos licitatórios em jornais diários de grande circulação, resumem-se à justificativa de serem medidas desnecessárias e antieconômicas, pois a publicação em “sítio eletrônico oficial” e no futuro Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP) já seria suficiente para atender ao princípio constitucional da publicidade e para satisfazer o interesse público.

Os vetos 13.26 e 13.27, contudo, são desprovidos de fundamentos explícitos, claros e congruentes. Não foram apresentadas quaisquer evidências seja da satisfação do interesse público ou do caráter antieconômico e desnecessário das medidas.

O interesse público tem supremacia sobre qualquer outro interesse, seja individual ou coletivo e, principalmente, sobre o interesse da administração pública. A diferença entre esses conceitos é relevante, pois o aparato burocrático estatal, guiado pelos governos, tende a dirigir sua atuação para satisfazer suas necessidades corporativas, dentre elas, favorecer os cofres públicos, por exemplo, quando usa seu poder de fiscalização ou quando nega a prestação de serviços com a finalidade de gerar maior receita.

A supremacia encontra fundamento num ponto central da ordem jurídico-constitucional: o exercício de poder por seus provisórios detentores só é legítimo nos regimes democráticos quando garante a plena eficácia dos direitos fundamentais. A administração pública está vinculada a uma série de deveres fundamentais decorrentes do sistema de direitos conferido a todas as pessoas num Estado constitucional e democrático.

O poder público é subordinado ao interesse público e não pode subordiná-lo aos seus interesses de ocasião. Em razão disso, tem o dever de fundamentar as suas decisões com clareza, precisão e certeza. O uso de conceitos vagos como “medidas desnecessárias e antieconômicas” sem fundamentá-los serve única e exclusivamente a um discurso apologético de que reduzir gastos é uma razão que se justifica por si mesma e exclui qualquer ponderação de outros valores constitucionais relevantes.

O princípio constitucional da publicidade das decisões da administração pública envolve três aspectos: conferir-lhes validade jurídica, promover o acesso amplo às decisões da administração pública e divulgar as suas atividades com transparência – conforme estabelecem o artigo 5,º, XXXIII, o artigo 37, caput, § 1.º e § 3.º, II, e o artigo 216, § 2.º, da Constituição federal.

Além disso, as publicações promovem a igualdade de todos perante a administração pública, na medida em que ampliam o acesso a essa informação e favorecem que fornecedores de pequeno porte possam concorrer às compras governamentais em situação de igualdade com os que detêm maior estrutura de gestão.

O acesso amplo às decisões do poder público deve ser contemplado também porque fortalece as possibilidades de controle social de sua atuação. Qualquer licitante, contratado, pessoa física ou jurídica pode denunciar irregularidades aos órgãos de controle da administração pública.

O meio físico, diferentemente do digital, não é suscetível a alterações de seu teor que possam passar despercebidas, não está vulnerável a ataques cibernéticos de hackers, nem depende de estabilidade de redes de internet ou elétrica.

Usar única e exclusivamente o meio digital contém elevado grau de risco de acesso seguro à informação. A publicação dos extratos pode ser de difícil localização no site, sistemas e tecnologias podem ser corrompidos, descontinuados e modelados para criar sombras e segredos.

À parte a segurança da informação, a produção de jornais é um setor da economia gerador de empregos e renda. Sofrerá grande impacto negativo se os vetos forem mantidos. Jornais municipais e regionais podem vir a encerrar suas atividades. Uma medida, portanto, antieconômica.

Esses jornais são responsáveis pela diversidade das opiniões, pela visibilidade dos assuntos comunitários e pelo tratamento mais preciso dos temas regionais, municipais e até de bairros, como é o caso de alguns. A ausência das publicações de extratos eliminará uma fonte de receita livre da vontade política de governantes e reduzirá a livre circulação de informação.

Por coerência na argumentação, se essas publicações são medidas desnecessárias e antieconômicas, as publicidades governamentais em jornais de grande circulação nacional, regional e local também o seriam, pois podem ser perfeitamente veiculadas somente pelos sítios eletrônicos e outros canais de mídia oficiais para satisfazer o interesse público.

Tratar a publicação de editais de licitação como “medida desnecessária e antieconômica”, sem nenhuma evidência factual, desconsiderando valores e direitos fundamentais como o da liberdade de informação flerta com o conceito de razão de Estado, em que o gosto pelo poder se dirige a construir uma autoridade estatal forte e acima do respeito a limites impostos por uma democracia constitucional.

DOUTOR EM DIREITO, PROFESSOR DE DIREITO PÚBLICO DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA, É ADVOGADO NO MARCOS ROGÉRIO & MORETH ADVOCACIA

Opinião por Adriano De Bortoli