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Opinião|Reforma tributária não anda há 30 anos

Propostas pontuais, parciais e fragmentadas só agravarão a falta de funcionalidade do atual sistema tributário brasileiro.

Atualização:

A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 110 se apresenta como uma reforma do sistema tributário. Não é. Propõe apenas a unificação de alguns tributos sobre bens e serviços em duas novas incidências: Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS).

Há total ausência de um projeto nacional sistêmico e articulado no interesse de toda a sociedade. A expectativa da reforma foi ocupada por propostas pontuais, abertamente patrocinadas por grupos específicos de interesse, como ocorreu mais notoriamente com as PECs 45 e 110, o Simplifica Já e o Projeto de Lei 2.337, respectivamente patrocinados pelo setor industrial, pelos municípios de médio e grande portes e pela burocracia da Receita Federal. Nada contra essas legítimas tentativas de corrigir e aprimorar o sistema, mas, por focarem em visões parciais, acabam se inviabilizando por si sós.

A PEC 110 já recebeu 252 emendas, das quais 68 foram acatadas total ou parcialmente, deixando a sensação de uma proposta pouco coordenada e alterada pontualmente para atender a pleitos específicos que lhe garantam apoio político. Virou uma mélange com a PEC 45, que volta à cena com um teatral acordo entre o Ministério da Economia e o Senado.

Há vários empecilhos técnicos para sua aprovação – numerosos demais para serem relacionados –, destacando-se, entre eles, a questão das cooperativas, o deslocamento de carga tributária em desfavor dos setores intensivos em mão de obra, como os serviços, e a enorme complexidade que adviria da transformação dos produtores rurais em contribuintes do Imposto sobre Valor Agregado (IVA), um tributo complexo por natureza. Há preocupação sobre os impactos do IVA Dual sobre os Estados exportadores e sobre a perda da base de serviços pelos médios e grandes municípios brasileiros, que concentram mais de 60% da população urbana.

O mais preocupante, contudo, é que todos os pontos polêmicos do projeto são remetidos a futura regulamentação por legislação infraconstitucional, sem que se tenha a mais ínfima ideia do conteúdo desses projetos de lei que nem sequer foram apresentados para discussão pública.

A reforma tributária exige uma discussão sistêmica, de equilíbrio geral, e não parcial. A abordagem fracionada dos projetos recentemente discutidos no Brasil e ao longo dos últimos 30 anos gera, naturalmente, situações que exigem correções em outros componentes do sistema tributário, tornando essencial a apresentação de aprofundados estudos e avaliações de impacto, notoriamente ausentes no debate tributário nacional.

Não é de estranhar, pois, que as chamadas “reformas tributárias” têm gerado fortes fraturas e profundos dissensos de opinião ao longo das últimas décadas.

Nesse sentido, e seguindo o exemplo de praticamente todas as grandes reformas do sistema tributário em vários países relevantes no mundo, o caminho para o sucesso se encontra na busca de projetos de reforma que atendam aos indispensáveis critérios de abrangência, abordagem sistêmica, interesse público e independência.

Abrangência para açambarcar a totalidade dos tributos dentro de uma abordagem sistêmica, atendendo ao interesse público e com independência diante dos grupos de interesse, públicos ou privados.

É necessário que os pesquisadores, distantes das disputas políticas e das urgências de curto prazo, projetem um sistema coerente de impostos que substitua os velhos esquemas, que estimule o cuidado ambiental e a eficiência econômica e que garanta recursos suficientes para o financiamento do gasto público. Tudo isso é imprescindível tanto para garantir os direitos de cidadania como para manter a progressividade e a justiça fiscal.

Propostas pontuais, parciais e fragmentadas, como discutir apenas o Imposto de Renda, ou apenas os impostos sobre bens e serviços isoladamente, só contribuirão para agravar a falta de funcionalidade do atual sistema tributário brasileiro. Discutir a tributação de bens e serviços sem a necessária conciliação com outros importantes componentes do sistema, como a tributação de renda e a tributação sobre o trabalho, terá sempre como resultante a continuidade das frustrações que se sucedem em sequência há décadas.

Considerando as observações anteriores e com o intuito de destravar o debate que se arrasta há mais de 30 anos no Brasil, proponho que a reforma tributária parta de um projeto inicial elaborado por um grupo de especialistas independentes, com a participação de todos os setores produtivos da sociedade, como empresas, trabalhadores, consumidores e investidores de todos os setores da economia, indústria, comércio, serviços, agropecuária e setor público.

Trata-se de construir um Pacto Tributário Nacional que leve em conta não só a interdependência dos vários tributos entre si, mas também a complexidade do mundo digital, que a cada dia desafia com mais virulência os sistemas tributários convencionais incapazes de lidar com os desafios da crescente servicificação do setor produtivo. Uma reforma tributária que olhe para a frente, para o novo mundo exponencial e desmaterializado, em vez de olhar pelo retrovisor e adotar como padrão os agonizantes modelos ortodoxos criados em meados do século passado para uma economia analógica, que míngua a olhos vistos.

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DOUTOR EM ECONOMIA PELA HARVARD UNIVERSITY (EUA), PROFESSOR TITULAR DA FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS (FGV), FOI SECRETÁRIO ESPECIAL DA RECEITA FEDERAL E DEPUTADO FEDERAL