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Presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (Irice) e ex-embaixador do Brasil em Londres (1994-99) e em Washington (1999-2004), Rubens Barbosa escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|Revisitando a negociação Brasil-Turquia com o Irã

Os dois países teriam decidido interferir no processo sem saber de todos os detalhes

Atualização:

Espera-se para esta semana a conclusão dos entendimentos entre os Estados Unidos e o Irã a fim de definir as condições para a volta, no governo Biden, ao acordo nuclear, abandonado por Trump e, por isso, desconsiderado por Teerã.

Por seu interesse e oportunidade, transcrevo a descrição que o ex-embaixador da França nos EUA Gérard Araud fez dos entendimentos sobre esse importante acordo. No livro Passeport Diplomatique (Grasset, 2019), Araud, na época diretor político do Quai D’Orsay e negociador francês nas tratativas com o Irã, comenta as negociações encetadas por Brasil e Turquia com o Irã, segundo a visão dos países que negociaram com o governo iraniano.

A iniciativa brasileira e turca de levar adiante a negociação, na interpretação de Lula e de seu ministro do exterior, resultou de pedido formulado por carta do presidente Obama, na qual ressaltava que os EUA apoiavam a proposta do ex-diretor-geral da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) no sentido de que o Irã transferisse 1.200 quilos de seu urânio de baixo enriquecimento para fora do país (Turquia). O presidente dos EUA lembra que havia pedido cautela a Lula nas negociações com o Irã, por não acreditar na boa-fé do governo de Teerã, e instara o Brasil a insistir com o Irã para aceitar o oferecimento do governo de Washington de o país manter seu urânio na Turquia como caução, enquanto o combustível nuclear estava sendo produzido. Esse foi o encorajamento contido na carta de Obama.

O acordo negociado por Brasil e Turquia com o Irã previa o envio pelo Irã à Turquia de 1.200 quilos de seu urânio levemente enriquecido (a 3,5%) para uma troca, no prazo máximo de um ano, por 120 quilos de combustível altamente enriquecido (20%), necessário para o reator experimental de Teerã. O acordo, que reconhecia ainda o direito do Irã de utilizar para fins pacíficos a tecnologia nuclear e o enriquecimento de urânio, segundo Celso Amorim, foi rejeitado pela secretária de Estado Hillary Clinton menos de 24 horas depois da sua assinatura.

Segundo Araud, no meio de uma difícil negociação que se estendia por mais de seis anos, “o Brasil e a Turquia, sem conhecer todos os detalhes desses entendimentos, decidiram interferir no processo, com base em uma interpretação da carta de Obama que reafirmava o objetivo que o grupo 5+1 (EUA, França, Reino Unido, Rússia e China) estava perseguindo (transferência do urânio para fora do país), sem entrar nos detalhes, como era de se esperar nesse tipo de correspondência”.

“Os negociadores brasileiros e turcos, que desconheciam o histórico das longas negociações com o Irã, decidiram começar uma negociação paralela com base na carta de Obama a Lula e assinaram com os iranianos – que sabiam precisamente o que estava por detrás das palavras – um texto desequilibrado, que todos, inclusive a Rússia e a China, tiveram de rejeitar”.

“No primeiro parágrafo do acordo, ficava reconhecido o direito do Irã de enriquecimento do urânio, que não estava em negociação com os EUA. Isso representava, de um lado, o descumprimento de cinco resoluções do Conselho de Segurança da ONU que solicitavam que o Irã suspendesse as atividades nessa área, e de outro, uma relevante inovação em termos de não proliferação, pois nunca o enriquecimento do urânio para programa nuclear foi considerado um direito, contrariamente ao direito no tocante ao uso pacífico da energia nuclear”.

“O Brasil e a Turquia caíram em uma armadilha”. A bem da verdade, comenta Araud, “a carta de Obama era ao mesmo tempo muito pouco precisa e contribuiu para deixá-los perdidos em um labirinto, no qual os próprios negociadores do grupo estavam sem saída” havia seis anos. “Brasil e Turquia se abstiveram na votação da Resolução do conselho de segurança que impôs sanções contra o Irã”.

Araud conclui que, “além de desequilibrado, o acordo incorporou reivindicações do Irã que não haviam sido aceitas pelo grupo 5+1, como o direito ao enriquecimento do urânio para o programa nuclear, o que contrariava cinco resoluções da ONU, prevendo apenas sua utilização para fins pacíficos”.

Os comentários do ex-embaixador francês em Washington qualificam as reiteradas manifestações de Lula e de Amorim de que o Brasil se engajou na negociação com o Irã em decorrência de um pedido formal de Obama. Uma leitura atenta da carta do presidente dos EUA mostra que o governo americano apenas instou o Brasil e a Turquia a convencerem Teerã a transferir o urânio de baixo teor para fora do país, nos termos da proposta a AEIA.

Depois desse episódio que envolveu o Brasil diretamente, as negociações prosseguiram por quase uma década e foram concluídas em 2019. O Irã assumiu a obrigação de suspender por 15 anos seu programa nuclear com a redução do total de centrífugas e de seu estoque de urânio. Com a saída dos EUA, Washington voltou a impor sanções políticas e econômicas. A plena reativação do acordo sobre o programa nuclear de Teerã passa pelo cumprimento pelo Irã das restrições ao processamento do urânio e pela suspensão das sanções americanas.

PRESIDENTE DO IRICE, É MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS