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Opinião|Saúde x economia, um falso dilema

Se tratarmos remédio e efeito colateral como inimigos, deixaremos de adotar medidas eficazes

Atualização:

Temos observado discussões-limite envolvendo temas de Direito e de saúde pública neste momento tormentoso para todos nós, em que presenciamos um microrganismo a destruir vidas, sonhos e planos.

Até que sobrevenha tratamento preventivo, mediante vacina, ou cientificamente eficaz, em caso de contágio, o que resta às autoridades é buscar diminuir a proliferação do germe com estratégias de isolamento e de diminuição da circulação de pessoas. Quem o afirma é a consciência científica nacional e internacional, bem como a experiência de nações que já sofreram com a etapa mais aguda da crise em seus sistemas de saúde. Contudo, como todo remédio, o isolamento também tem o efeito colateral de solapar uma economia com as dificuldades que nós, brasileiros, sempre enfrentamos.

Encontramos no artigo 196 da Constituição federal competir ao Estado brasileiro o estabelecimento de políticas sociais e econômicas, dentre outros temas, objetivando a redução do risco de doença, com acesso universal e igualitário. No artigo 198, as ações dos serviços de saúde são organizadas em forma de rede regionalizada e hierarquizada, um sistema único que tem na Lei do SUS (Lei Federal n.º 8.080/1990) sua expressão mais bem-acabada. No artigo 7.º dessa lei lemos que o SUS é organizado sob diversos princípios, dentre os quais, a descentralização e a integração. Descentraliza-se para permitir liberdade de ação a quem se encontra na ponta do atendimento; integra-se, para organizar a rede hierarquizada de atendimento. Aliás, o mesmo dispositivo legal destaca a descentralização dos serviços para os municípios (artigo 7.º, inciso IX, a).

Parece relativamente simples compreender essa tessitura do nosso sistema de saúde, que, além de abranger a parte pública do atendimento, congloba a iniciativa privada, por exemplo, ao regular planos particulares, e pesquisa, produção e comercialização de medicamentos.

Nesse contexto, e visando ao enfrentamento da pandemia do coronavírus, Estados e municípios estabeleceram regramentos administrativos limitando o funcionamento de atividades tidas como não essenciais, como forma de ministrar o medicamento possível no momento: diminuir a velocidade de contágio. Como já dissemos, o efeito colateral a essas atividades econômicas - e às pessoas que delas dependem - é grave, como é grave para a economia como um todo. Há previsões nada otimistas para a economia mundial e não será diferente para os brasileiros.

Infelizmente, como se pudesse haver uma disputa entre tratamento e efeito colateral, medidas de isolamento estão sendo postas em xeque, mediante questionamentos severos - e ignominiosos até - às autoridades que estão simplesmente cumprindo o papel que lhes prescrevem a Constituição federal, a lei do Sistema Único de Saúde e outras normas. Aliás, diga-se, a omissão dos agentes públicos poderá configurar ato de improbidade administrativa, sancionável pelo Direito.

De toda forma, a resultante dessa disputa macabra é o enfraquecimento das medidas de prevenção, justamente as que podem mitigar o sofrimento da coletividade. Vivemos numa sociedade marcada pela pós-modernidade, em que o Estado busca, antes de impor, convencer para que sejam respeitadas as suas emanações.

Recobremos a Constituição. Em seu artigo 23, inciso II, nossa Lei Maior estabelece ser de competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios cuidar da saúde e da assistência pública, da mesma forma que estabelece ser também de todos os entes federativos, em regime de comunhão, a tarefa de cuidar dos menos favorecidos. 

E cooperação é a regra para compreender a atuação de uma atividade pública sob o regime de competência constitucional comum. Cooperação pressupõe diálogo, convencimento, não disputa. Cooperação pressupõe que cada ente federado assuma o seu papel, vis-à-vis sua capacidade política, técnica e financeira, no enfrentamento da pandemia que nos assombra.

Não podemos assistir inertes à reedição de uma “revolta da vacina”, ocasião em que houve também rebeldia contra a ciência e contra o bom senso. Compete ao Estado nos liderar de forma coerente e firme nesse propósito: com medidas sanitárias adequadas, na forma da Constituição e da lei, e com medidas econômicas para minimizar o sofrimento agora intensificado dos mais necessitados. 

Se tratarmos remédio e efeito colateral como inimigos mortais, como estamos assistindo no Brasil, deixaremos de adotar medidas eficazes e científicas para sobrepujar essa pandemia. E aí só nos restará contar corpos, que representarão um sinistro troféu da citada disputa macabra, que nos está sendo imposta por quem deveria estar regendo de forma harmoniosa a orquestra do bem-estar social, com respeito à independência dos músicos. 

O suposto maestro já disse em alto e bom som que todos nós vamos morrer um dia, deixando implícito que pouco importa se for agora, sem se dar conta de que ao Estado cumpre preservar a vida, e não precipitar a morte. 

* COM SEBASTIÃO BOTTO DE BARROS TOJAL, PIERPAOLO CRUZ BOTTINI E IGOR SANT’ANNA TAMASAUSKAS

SÃO ADVOGADOS

Opinião por Antônio Claudio Mariz de Oliveira