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Opinião|Sem voz e sem afeto

É urgente tirar o tema do abuso sexual de crianças e adolescentes da invisibilidade e priorizá-lo na agenda pública

Atualização:

O abuso sexual é uma realidade para milhares de crianças e adolescentes. Uma ameaça universal, independentemente do nível de desenvolvimento econômico ou da qualidade de vida dos cidadãos. Trata-se de pandemia silenciosa e negligenciada. Problema tabu, a dificuldade começa já na resistência da sociedade em abordá-lo. Ademais, a maior parte dos casos ocorre dentro de casa, praticados por alguém próximo à criança, e a sua revelação tem impactos na estrutura familiar, de forma permanente.

De acordo com o Ministério dos Direitos Humanos, em 2019 foram registradas 11.241 denúncias de abuso sexual infantil. Em 2020, esse total subiu para 20.771. Embora os meninos também sofram violência sexual, os alvos principais são as meninas: 84%. O Anuário Brasileiro de Segurança Pública aponta que, a cada hora, quatro meninas de até 13 anos são estupradas; a maior parte tem até 5 anos de idade. Esses números podem ser ainda maiores, em razão da sua subnotificação – estudos indicam que, para cada dez casos que acontecem no País, apenas um é denunciado.

Nos Estados Unidos, os números também são assustadores. Em 2016, as agências de proteção da infância apontaram que 57.329 crianças e adolescentes foram vítimas de abuso sexual; 34% tinham menos de 12 anos e 66%, entre 12 e 17 anos, de acordo com a ONG Rape, Abuse & Incest National Network. Dados de 2018 do departamento de saúde evidenciam que uma em cada quatro meninas e um em cada 13 meninos sofrem abuso sexual em algum momento da infância. Os abusadores são conhecidos das vítimas em 93% dos casos, e 88% são do sexo masculino. O perfil da vítima e do agressor se repete em todos os países.

Na comunidade europeia, foi lançada a campanha Uma em cada cinco, alertando para o alto índice de ocorrência de abuso ou vitimização sexual durante a infância. Para G. Nikolaidis, presidente do Comitê de Lanzarote, criado para combater tais crimes, os casos divulgados no mundo são apenas a ponta do iceberg.

Segundo especialistas, houve um aumento expressivo nos números já alarmantes de abuso sexual contra crianças e adolescentes durante o isolamento social na pandemia de covid-19. Como a maioria dos casos acontece em ambiente doméstico, é razoável supor que as crianças estejam mais tempo sujeitas às investidas de seus potenciais abusadores. E, com as escolas fechadas, espaços importantes para a identificação de alguma forma de violência, as denúncias também se tornaram mais difíceis.

No relatório Out of the Shadows, o Brasil aparece com um índice bastante inferior no quesito percepção da violência (45%), tanto em relação a países considerados mais eficientes no combate ao abuso infantil – Reino Unido (84%), Suécia (73%) e EUA (71%) – como em comparação a seus pares na América Latina Colômbia (61%) e Peru (53%). Em compensação, o Brasil tem um arcabouço legal mais robusto para enfrentar o abuso ou a exploração sexual infantil, com destaque para a lei da escuta protegida, de 2017. Essa lei dá tratamento mais humanizado às vítimas ou testemunhas de violência, limitando os seus relatos perante os órgãos jurídicos da rede de proteção ao estritamente necessário.

Essa proteção à vítima não é garantida nos Estados Unidos, mas o país conta com uma estrutura consolidada para lidar com o problema, a partir das 795 unidades de Child Advocacy Center (CACs) espalhadas nos Estados. Ali, os recursos estatais priorizam o aumento da criminalização dos abusadores em detrimento de estratégias de proteção proativa de crianças. Há leis muito severas de punição de agressores sexuais. A lei federal de Registro e Notificação de Criminosos Sexuais (Sorna), de 2006, estabeleceu a obrigatoriedade de um cadastro nacional de todos os criminosos sexuais condenados, cujos registros incluem o endereço, dados de aparência física e histórico criminal do agressor. Todos os 50 Estados exigem que o próprio abusador faça seu registro e o atualize sempre, e põem à disposição as informações em site público.

Dez Estados americanos adotam punição bastante polêmica: a lei da castração química, que exige que o abusador reincidente receba tratamento farmacológico de longo prazo. Muitos juristas argumentam que essa punição viola a oitava emenda constitucional, que proíbe o Estado de impor penas cruéis e incomuns. Mesmo assim, Califórnia, Flórida, Iowa, Georgia, Louisiana, Montana, Oregon, Texas, Wisconsin e Alabama têm suas próprias leis de castração química. No Texas, norma de 1997 permite a castração cirúrgica de infratores.

A perseguição e a punição implacáveis aos abusadores não são tidas como políticas mais eficazes para combater a violência e o abuso sexual infantil. Políticas de prevenção deveriam ser privilegiadas. Vivenciar este trauma na infância pode resultar em consequências permanentes para a saúde física e mental do indivíduo. As sequelas não atingem apenas a vítima, geram prejuízos incalculáveis à sociedade. É extremamente urgente tirar o tema da invisibilidade e priorizá-lo na agenda pública. A visibilidade não diminui a violência, mas é um passo para dar voz àqueles que nem sequer conhecem o afeto.

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CIENTISTAS POLÍTICAS