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Opinião|‘Sound and fury’

Não é prudente subestimar quem tem grande parte dos meios e recursos políticos...

Atualização:

“Life is a walking shadow...  full of sound and fury, signifying nothing”Shakespeare

Quem acompanha a política diariamente deve estar surpreso com a polêmica que se instalou entre o presidente da Câmara e o presidente da República. Com a viagem de Jair Bolsonaro a Israel e os contatos de Rodrigo Maia com ministros do governo, parece haver indícios de uma trégua.

No essencial, a discussão resumia-se à aprovação do projeto de lei sobre a Previdência, cuja reforma Bolsonaro se comprometera a fazer e foi entregue à Câmara para deliberação e votação. O problema surgiu porque o presidente da Casa estranhou e questionou o fato de que o chefe do Executivo não estaria “articulando” a aprovação do projeto entre os deputados.

Este é o ponto central da controvérsia: a falta de “articulação” política do governo com os parlamentares. A insistência do presidente da Câmara nela pareceu estranha, inusitada, descabida como matéria política para provocar tal discordância.

A quem interessaria a articulação para aprovação? Ao presidente Bolsonaro, que propôs o projeto. Estava o presidente legalmente obrigado a fazer a “articulação”? Não. A articulação é um procedimento político. O presidente da Câmara está legalmente proibido de pautar um projeto de lei que não foi “articulado” com os deputados? Não, nada o impede.

Se a lei exige do chefe do Executivo que encaminhe seus projetos ao Legislativo para deliberar e votá-los, Bolsonaro cumpriu sua obrigação; se ao presidente da Câmara, que recebeu o projeto, cumpre encaminhá-lo para decisão, e não o fez porque Bolsonaro não iniciou as “articulações”, então é ele que está errado ao insistir que Bolsonaro faça o que não está legalmente obrigado a fazer.

Ao assim agir, e de modo insistente, ultrapassa a linha que separa o Poder Legislativo do Poder Executivo. Como deputado, pode desejar que o projeto seja aprovado e estar convicto de que para aprová-lo a “articulação” seja necessária; mas como chefe de uma das Casas do Legislativo não é recomendável, é estranho, inusitado e descabido.

Por que, então, não dá início à deliberação? Segundo Maia, não cabe a ele articular a aprovação. Ao usar essa expressão, cometeu um deslize e revelou seu interesse. O deslize foi admitir a hipótese de que, como Bolsonaro não iniciava as articulações, se esperava que sobre ele, Maia, recaísse essa responsabilidade política. Então, Maia denunciou-o à opinião pública por não estar articulando.

Em resposta, Bolsonaro foi enfático ao dizer que até aquele momento cumprira seu compromisso político, agiu como manda a Constituição, fez o que lhe competia: o projeto de reforma da Previdência. Cabia, então, às Casas legislativas fazer o que lhes competia, deliberar e votar o projeto do Executivo.

Maia errou ao declarar que não lhe cabe “articular a aprovação”. Errou porque admitiu que corria esse risco, embora a separação dos Poderes garanta sua imunização. Errou, também, ao evidenciar que se sentia ameaçado pelo comportamento de Bolsonaro, ao elaborar o projeto e não iniciar a “articulação” da sua aprovação.

Sua insistência, contudo, revelava seu interesse político. Se Bolsonaro assumisse pessoalmente as “articulações”, o ônus de uma eventual derrota seria do chefe do governo; sem “articular” pessoalmente, esse ônus recairia em grande medida sobre Maia, já que é o presidente e líder de uma das Casas do Legislativo e suas prévias declarações favoráveis à aprovação não deixavam espaço para recuo em caso de derrota.

Bolsonaro fez a jogada conhecida como xeque ao rei: transferiu a responsabilidade principal pela aprovação ao Legislativo – Maia, os deputados, os partidos e o Senado. Se o Legislativo não aprovar uma medida que é considerada a salvação da economia, Bolsonaro terá feito sua parte e os eleitores que o elegeram, a deles – e Maia, os deputados e os partidos políticos terão de responder perante o eleitorado.

Em apoio a essa interpretação é oportuno lembrar que nada deixou Maia mais revoltado do que a afirmação de Bolsonaro de que não aceitava praticar a velha política da compra de votos, das negociações ilegais e da corrupção. Ao sugerir um parentesco entre “articulações” e velha política, Bolsonaro deixou-o numa situação perigosa. Quanto mais insistir na “articulação”, mais se aproximará da velha política. Se tomar a iniciativa das “articulações”, será visto como um assessor de Bolsonaro.

Bolsonaro, com a declaração de que fizera a sua parte e agora compete à Câmara fazer a dela, mantém-se rigorosamente dentro da lei e deixa para o Legislativo o ônus político de rejeitar o projeto prioritário de seu governo, que tem apoio da opinião pública e foi legitimado na eleição. Aprovado o projeto, Bolsonaro terá obtido uma vitória estratégica: a vitória que facilita outras. Derrotar o projeto não derrota Bolsonaro, derrota o Legislativo, que não respeitou a vontade das urnas. Bolsonaro terá tempo de mandato e recursos políticos para se recuperar.

Se dirigirmos nosso olhar para mirar os recursos à disposição do presidente, percebe-se que o governo, contrário à prática usual, zelosamente economiza os enormes recursos políticos que o Executivo possui num país estatista como o Brasil.

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Bolsonaro tem sob controle a caneta das nomeações para muitos milhares de cargos, o talão de cheques das liberações, o sistema bancário da União, as indicações para conselhos e agências, as necessidades dos Estados e municípios, a publicidade do governo, que por certo não ficará limitada às redes sociais, a capilaridades dos órgãos dos ministérios e, last but not least, sua comunicação pessoal com eleitores, além de poder adotar decisões simpáticas e populares para reconquistar e remobilizar aqueles que o apoiam.

Não é, pois, prudente subestimar quem tem grande parte dos meios e recursos políticos que outros presidentes da República também tinham... sem tê-los gasto. *PROFESSOR DE CIÊNCIA POLÍTICA, EX-REITOR DA UFRGS, É CRIADOR E DIRETOR DO SITE POLÍTICA PARA POLÍTICOS

Opinião por FRANCISCO FERRAZ