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O jornalista Carlos Alberto Di Franco escreve quinzenalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|STF – abuso e insegurança jurídica

É hora de todos, também os ilustres ministros do Supremo Tribunal Federal, fazerem uma sincera autocrítica.

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Atualização:

O momento atual do Brasil é de paixões exacerbadas: eleições que se aproximam, candidatos em campanhas sem limites, nervos à flor da pele. Pouca razão e excesso de emoção.

É em momentos assim que se exige uma maior ponderação de todos. Também de nós, jornalistas. Hoje, mais do que nunca, é importante que se viva a virtude da prudência, no sentido tomista: a arte de, serenamente, coletar todos os dados da realidade que possam ser úteis para a sua compreensão.

Mas não podemos esquecer que as eleições passam, as paixões esfriam, as candidaturas e os mandatos também se esvaem. Todavia, há coisas que permanecem, e muitas vezes causam danos de difícil reparação para a vida de um país.

Uma delas é a destruição da ordem jurídica, que no Brasil de hoje é visível a olho nu e, infelizmente, está sendo causada pela conduta de alguns ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), que é – ou ao menos deveria ser – o principal responsável pela garantia do cumprimento e da estabilidade do ordenamento jurídico.

O que se vem observando, lamentavelmente, é exatamente o contrário: várias decisões de ministros do STF (na maioria das vezes monocráticas) que, em vez de estabilizarem a ordem jurídica, a destroem, atropelando direitos fundamentais e, muitas vezes, também as instituições incumbidas da preservação e do cumprimento do Direito junto com o Poder Judiciário, como é o Ministério Público.

São precedentes perigosos, que acabam servindo de mau exemplo e, pouco a pouco, se propagam para outros órgãos do Poder Judiciário.

É o que se vê com a instauração do assim denominado “inquérito das fake news” (posteriormente, de forma jocosa, chamado por Marco Aurélio Mello – ele mesmo ex-ministro do STF – de “inquérito do fim do mundo”).

Esse inquérito foi instaurado em 2019 pelo então presidente da Corte, o ministro Dias Toffoli. Depois da instauração, sem que se fizesse nenhum sorteio do ministro responsável pela condução do inquérito, ela foi atribuída ao ministro Alexandre de Moraes.

O que motivou a instauração do inquérito foi a publicação de matéria da Revista Crusoé que trazia uma referência ao ministro Dias Toffoli durante apuração feita na Operação Lava Jato.

A instauração desse inquérito se deu mediante uma interpretação bastante alargada do artigo 43 do Regimento Interno do próprio STF, que prevê a possibilidade de instauração de inquérito em caso de infração à lei penal na sede ou dependência do tribunal e se isso envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição.

E esse inquérito – que tramita até hoje, já decorridos mais de três anos – tem permitido a tomada de uma série de medidas flagrantemente ilegais e inconstitucionais, contra pessoas que nem mesmo são julgadas no STF – o que, por si só, torna abusivas as medidas determinadas por seus ministros.

Acrescente-se que não pode haver a acumulação das posições de vítima, investigador, acusador e julgador que profere a decisão final. Tal poder, inconstitucional e autoritário, tem ocorrido com frequência assustadora.

Atualmente, num evidente desvirtuamento da interpretação deste artigo 43 do Regimento Interno, tudo é trazido para o arbitrário inquérito: blogueiros, jornalistas, partidos políticos, “empresários bolsonaristas”, etc. A liberdade de expressão, garantia maior da Constituição, foi para o ralo do autoritarismo judicial.

As decisões de Alexandre de Moraes ferem o princípio do juiz natural, previsto na Constituição federal de 1988. Em poucas palavras, este princípio significa que todas as pessoas têm o direito de serem julgadas pelo juiz estabelecido na Constituição e nas leis, que preveem expressamente quais são as matérias e quais são as pessoas que podem ser julgadas por um determinado juiz. É importante registrar que um juiz que não tenha competência para julgar uma pessoa não pode determinar medidas cautelares e coercitivas contra ela (uma prisão preventiva, uma busca e apreensão, por exemplo). É isso, rigorosamente, o que está acontecendo.

Já se vão semanas desde que o STF, na figura do ministro Alexandre de Moraes, deu mais uma cartada em seu assalto às liberdades e garantias individuais ao ordenar uma série de medidas cautelares contra empresários, em razão de conversas privadas entre eles num grupo de WhatsApp. O fim do sigilo sobre os documentos relativos a essa operação apenas escancarou o que já se intuía: a ausência completa de base legal para medidas como busca e apreensão de celulares, quebra de sigilos bancário e telemático, suspensão de contas em mídias sociais e até bloqueio de contas bancárias.

Além disso, os advogados dos investigados no inquérito das fake news, do STF, e em alguns de seus desdobramentos, como os inquéritos dos atos antidemocráticos e das mídias digitais, completaram dois anos sem vistas e sem acesso à íntegra dos autos desses processos. Uma ilegalidade e flagrante desrespeito ao direito de defesa.

É hora de todos, também os ilustres ministros do STF, fazerem uma sincera autocrítica. Golpes não dependem apenas de tanques. Podem ser desfechados pelo medo, pela leniência e pela omissão.

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JORNALISTA E-MAIL: DIFRANCO@ISE.ORG.BR

Opinião por Carlos Alberto Di Franco

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