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Tradutor e ensaísta, Luiz Sérgio Henriques escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|Tempo de virtudes cívicas

O embate mais árduo virá depois da eleição, quando se tratar de reconstruir as instituições e resgatar as promessas da civilização brasileira.

Atualização:

Quando a História acelera e a política toma rumos imprevisíveis, é comum que se sucedam os instantes que, segundo o espanhol Javier Cercas, merecem os cuidados de uma aula clássica de anatomia. No seu país, com as feridas ainda mal curadas décadas depois do flagelo da guerra civil, a irrupção de um vulgar militar golpista no Parlamento, no inverno de 1981, pôs em questão a transição pós-franquista, intimidando os deputados e colocando a Espanha mais uma vez na encruzilhada. De pé, inscrevendo corajosamente seus nomes na “religião civil” que nem a mais secular das democracias dispensa, só o primeiro-ministro Adolfo Suárez, o vice, general Gutiérrez Mellado, e o eurocomunista Santiago Carrillo. A democracia seguiria adiante, como sabemos.

Poucos anos antes, do lado de cá do Atlântico, outra transição também inspirava gestos de alto valor cívico, como a cerimônia ecumênica por Vladimir Herzog ou, dois anos mais tarde, a carta lida por Goffredo Telles nas arcadas da Faculdade de Direito da USP. Ao mesmo tempo, assimilávamos um vocabulário inédito, no qual se destacava um conceito-chave da teoria moderna, o de “sociedade civil”. Tal conceito podia ser declinado de variadas formas, mas o certo é que ele afastava a ideia da política seja como expressão passiva da economia, seja como mero disfarce da força bruta. Estávamos literalmente obrigados a ir além dos modos e costumes do autoritarismo.

O aprendizado coletivo consistia no fato de que, na democracia que se entrevia, seria preciso vencer e convencer – e também perder, como é próprio da rotina de qualquer comunidade civilizada. E todo este movimento desaguaria mais adiante na Constituinte, em cujo ponto mais solene o herói-fundador diria, de modo lapidar, que “traidor da Constituição é traidor da Pátria”. Os contornos da nossa religião cívica estavam assim delineados por muitas décadas afora.

Pondo entre parênteses a diversidade de contextos, vivemos agora uma inesperada repetição. Há pouco, Dom Pedro Stringhini, em comovente ato inter-religioso na Sé paulista, evocou o grande cardeal de 1975, ali sepultado, ao celebrar Dom Phillips e Bruno Araújo Pereira, assassinados numa Amazônia dolosamente convertida em terra sem lei. E a “sociedade civil” se reergueu nas mesmas arcadas do Largo de São Francisco, com documentos – um dos próprios juristas, outro das “classes produtoras” reunidas na Fiesp – que recolheram centenas de milhares de assinaturas e, por esta e outras razões, têm como alma a ampla frente democrática que possibilitou a saída pacífica do regime militar.

Nos últimos anos, antes do pacto entre Executivo e Centrão tramado nos desvãos do “orçamento secreto”, tivemos muitos chamados ao fechamento do Congresso e, ainda, continuados lances de agressão ao Supremo Tribunal Federal (STF). Ensaios de golpe ao velho estilo, ora provavelmente arquivados, eles foram substituídos por tentativas reiteradas de sabotar as “instituições invisíveis” da República (Pierre Rosanvallon), como a confiança nas eleições e na sua legitimidade. Isso, que é do conhecimento geral, prefigura os perigos de um eventual segundo mandato do governante autocrata, de resto abundantemente escrutinados na literatura internacional sobre as recorrentes e diversificadas manifestações da extrema-direita populista.

O espírito da frente democrática vai muito além das fronteiras de qualquer partido, mesmo daquele mais organicamente estruturado e que, por isso, apresenta a candidatura mais forte entre as que se opõem à reeleição do autocrata. Em tese, parece não haver tempo para uma alternativa viável no campo oposicionista, ainda que tal circunstância não vá cancelar a pluralidade de programas e visões de futuro. A observância dessa pluralidade é que avalizará a indispensável “ida ao centro” pela esquerda, e não, naturalmente, a escolha de um “vice decorativo” ou a cooptação de políticos avulsos, acima e além do diálogo entre partidos e suas direções regularmente constituídas. E isso para não falar da aguda compreensão, mais do que nunca necessária, das múltiplas faces da “sociedade civil”, irredutível a pretensões de mando ou controle faccioso, sejam quais forem.

Sem menosprezar o desafio eleitoral, que anuncia sobressaltos de montanha-russa, o embate mais árduo virá depois, quando se tratar de reconstruir pouco a pouco as instituições e promover o resgate das promessas da civilização brasileira. Num cenário de terra arrasada, virtudes cívicas diferentes, como a paciência e a vontade permanente de diálogo, deverão, então, ser continuamente mobilizadas. Caso se confirme nas urnas – o que não está dado de antemão! –, um novo governo capitaneado pela esquerda terá de recorrer às artes de um heroísmo cotidiano, nada retórico, ultrapassando o círculo do interesse próprio e pondo-se decididamente a serviço da República. Há quem diga que, até hoje, nos governos anteriores esta travessia corajosa rumo ao interesse comum nem sempre se realizou com a maestria esperada. Outra razão forte para começar a empreendê-la desde agora.

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TRADUTOR E ENSAÍSTA, É UM DOS ORGANIZADORES DAS OBRAS DE GRAMSCI NO BRASIL

Opinião por Luiz Sérgio Henriques
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