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Presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (Irice) e ex-embaixador do Brasil em Londres (1994-99) e em Washington (1999-2004), Rubens Barbosa escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|Um Mercosul na encruzilhada

Pelas dificuldades políticas, não parece possível chegar a acordo na reunião de hoje

Atualização:

Os ministros das Relações Exteriores e da Economia do Mercosul – Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai – reúnem-se hoje para discutir propostas que flexibilizariam as regras do Mercosul e a redução da tarifa externa comum (TEC). Essas possíveis modificações e transformações no Mercosul poderão afetar seu funcionamento e enfrentam dificuldades técnicas e políticas, sobretudo pela oposição argentina.

A proposta para flexibilizar as negociações comerciais do grupo regional com outros países foi apresentada pelo governo do Uruguai em reunião extraordinária do Conselho do Mercosul no dia 26 de abril. O documento inclui quatro aspectos que podem ser examinados em separado ou avaliados em conjunto: o tratamento da tarifa externa comum; a evolução das negociações comerciais externas em que se outorguem preferências tarifárias; a elaboração de um plano de negociações externas e reexame das prioridades da agenda de negociações externas do Mercosul, de modo a compatibilizá-las com eventuais negociações bilaterais; e permissão de negociações comerciais diferenciadas que permitam aos países-membros aproveitar plenamente as oportunidades do comércio internacional pela busca de mecanismos mais flexíveis. Nas reuniões técnicas, e na reunião de hoje, em nível político, será preciso definir o alcance e as implicações da proposta uruguaia, que desafia a regra de consenso prevista no Tratado de Assunção, que criou o Mercosul. Uma das possibilidades permite que os países-membros avancem entendimentos com base em ofertas individuais, prazos e ritmos de negociação diferenciados, desde que negociações conjuntas entre dois ou mais membros com terceiros países, incluindo as já iniciadas, não avancem por interesse ou oposição de um país. Por outro lado, a proposta contempla que qualquer país-membro poderá iniciar negociações tarifárias em grupo ou individualmente se a prioridade ou a não inclusão no plano de negociações externas de um terceiro país ou grupo de países não for considerada satisfatória para um ou mais países-membros. Também não está claro como tudo ficaria caso esse plano não seja aprovado. É importante a compreensão precisa do alcance da proposta pelas implicações políticas, pois, na hipótese de sua aprovação, o Mercosul poderia deixar de ser a união aduaneira estabelecida no Protocolo de Ouro Preto para se transformar numa área de livre-comércio, com a eliminação da TEC, em função de negociações individuais. Ao Brasil não deveria interessar que o Mercosul se transforme em área de livre-comércio, pondo fim ao grupo regional, em desrespeito ao Tratado de Assunção.

Adicionalmente, está em exame há mais de dois anos a proposta do Brasil de reduzir em 20% a TEC para todos os produtos, defendida pelo ministro Paulo Guedes, dentro da visão de que é necessário modernizar o Mercosul. Suavizada pelo Ministério da Economia, o Brasil aceitaria uma rebaixa de 10% no primeiro semestre de 2021 e os outros 10% até o início de 2022. A ideia encontra resistência da Argentina, em vista da situação econômica e do efeito sobre a indústria argentina, e a oposição de empresários nacionais pelo aumento do custo Brasil, ao contrário do que afirma o Ministério da Economia. Paraguai e Uruguai estão acompanhando o Brasil. O governo argentino contrapropôs a redução de 10%, aplicada apenas a 75% das linhas tarifárias dos mais de 10,3 mil produtos ou grupo de produtos, o que não é aceito pelo Brasil. Na realidade, alguma coisa tem de ser feita em relação à TEC, pois entre 30% e 40% dos itens tarifários gozam de algum tipo de regime especial, tornando o subgrupo regional uma união aduaneira imperfeita. Para superar o impasse e obter algum ganho, o Brasil poderia aceitar a fórmula de compromisso proposta pela Argentina.

Pelas dificuldades políticas, não parece possível que os quatro países do Mercosul cheguem a um acordo na reunião ministerial de hoje. Caso as propostas não sejam aprovadas, ficarão para decisão na presidência brasileira, no segundo semestre do corrente ano. Apesar da ênfase dos governos uruguaio e brasileiro, de um lado, e argentino, do outro, defendendo posições opostas, declarações públicas das autoridades dos três países deixam claro que o fim do Mercosul não está na agenda, nem sua transformação em área de livre-comércio. Na hipótese de o Brasil apoiar a posição argentina nas duas propostas, estaria aberta a porta para que se possa reconstruir, independentemente de ideologias, uma relação normal com nosso maior parceiro no Mercosul, o que é do nosso interesse, deixando para trás o gritante silêncio entre os presidentes dos dois países.

Dada a relevância do tema, essas decisões não deveriam ser adotadas sem ampla consulta ao setor empresarial, ao Congresso Nacional e a outros agentes sociais interessados em participar do processo de integração do Mercosul. A transparência (até agora a lista de produtos negociados com a União Europeia não foi divulgada) e a previsibilidade são fundamentais para a definição de estratégias e de investimentos por parte das empresas privadas, pois, dependendo das negociações, poderá ser necessária alguma modificação do Tratado de Assunção.

PRESIDENTE DO IRICE, É MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS

Opinião por Rubens Barbosa
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