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Professor titular de Teoria Política da Unesp, Marco Aurélio Nogueira escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|Um mundo que treme

O ‘inesperado’ bate às portas de todas as sociedades, nesta época de aceleração, apetites desmesurados, intenções ocultas e desespero nacionalista.

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Atualização:

Quando se pensava que ingressávamos numa fase mais amena, com a pandemia arrefecendo, eis que o mundo é sacudido por processos traumáticos, a indicar que ainda há muito que caminhar.

Podemos sempre “esperar o inesperado”, escreveu Thomas Friedman. Na vida, na economia, na política e nas relações internacionais. Uma guerra, portanto, como a que envolve Rússia e Ucrânia, precisa ser vista a frio, por mais repulsiva que seja.

Guerras caminham na contramão da civilização, mas fazem parte da história humana, que sempre se afirmou escorrendo sangue e sujeira por todos os poros. Hoje em dia, atingimos níveis elevados de civilidade, mas os guerreiros estão em campo. Não é somente Putin, com seu desejo incontido de poder e revanche, mas outros tantos, de maior ou menor relevância. A Otan não é uma aliança para defender os “valores ocidentais”, mas uma máquina de guerra, que compõe um quadro em que o alegado propósito defensivista fomenta reações agressivas. Todos cobiçam a Ucrânia por seu valor estratégico.

Não temos confrontos totais, mas guerras localizadas, escaramuças militares, arrogâncias nacionalistas, propensões à violência e à conquista, formando uma espiral que faz o mundo tremer a cada dia. Não há, como antes, uma guerra fria produzindo equilíbrios e contenções. O sistema internacional não tem um eixo claro: ele é multipolar, mas imperfeito, carente de padrões e centros de regulação.

Não há heróis e bandidos claramente definidos. Putin é um autoritário assumido, disposto a formar um império eurasiático, indiferente a vítimas e estragos. Zelensky, que governava a Ucrânia sem maior destaque, ganhou estatura e constrói uma imagem: fala o que é conveniente para os EUA e para a Alemanha, está sabendo criar empatia com os ucranianos. Joga o jogo, nem tudo nele é resistência patriótica. E há os norte-americanos, os europeus, os chineses, com suas diferenças e seus interesses. Todos querem ganhar, ou não perder. Disputas por hegemonia assopram o fogo.

Toda guerra é drama e tragédia, mortes, destruição, perdas. Não é diferente com a atual, cujas determinações poderiam ter sido processadas de outro modo. A guerra de Putin acentua as dificuldades da globalização. Força os Estados a cuidarem mais de si mesmos, a se voltarem para dentro, a se protegerem. O comércio internacional mergulha na incerteza. Os governos precisam incrementar suas habilidades de gestão, sua capacidade de coesão, suas políticas e suas interações internacionais.

É aí que entra o Brasil. Por aqui, as coisas continuam a piorar. O ministro da Justiça condecorou o presidente da República com a Medalha do Mérito Indigenista, premiando um flagrante inimigo dos povos originais brasileiros – de seu território, de seus recursos, de sua integridade étnica, das florestas que os protegem. Depois, descobrimos que o ministro da Educação, de quem mal se sabe o que pensa, resolveu partilhar sua gestão com pastores evangélicos, convertendo-os em intermediários junto a diversos prefeitos. E, por fim, revelou-se que as verbas do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação são manipuladas pelos partidos do Centrão, pilotados por Artur Lira e Ciro Nogueira, que as desviam para seus redutos eleitorais. Tudo isso é corrupção.

Em suma: temos um governo medíocre, de descaso, incompetência e desperdício. Desprovido de políticas consistentes, desinteressado da soberania nacional e das exigências da ordem internacional. Há aberta manipulação político-eleitoral e intenção explícita de desmoralização institucional. A República sangra em praça pública.

O País vai, assim, ficando cada dia mais despreparado para enfrentar o mundo que treme.

Não há, evidentemente, qualquer vínculo entre a guerra russo-ucraniana e as barbaridades que se cometem por aqui. São eventos distintos, cuja conexão deriva tão somente da condição de ocorrerem no mesmo intervalo de tempo. Quando os analisamos assim, vemos que o “inesperado” bate às portas de todas as sociedades, nesta época de aceleração, apetites desmesurados, intenções ocultas e desespero nacionalista.

Transições estruturais geram confusão, espanto e surpresas. Ficam para trás camadas históricas acumuladas, ao mesmo tempo que nascem novas bases. Tudo parece se deslocar. A humanidade, porém, não está a desaparecer. Continua a ter reservas éticas, cívicas e políticas para serem aproveitadas. As democracias representativas estão em recomposição e crise, cedem espaços preciosos para movimentos autoritários. Mas o autoritarismo carrega limites e produz seguidas deformações. Com o tempo, colide com as liberdades, fadiga e fracassa, terminando por ser superado. A democracia é mais plástica e flexível, consegue se adaptar aos desgastes inevitáveis.

A indignação que todo democrata sente neste momento em que as luzes do progresso piscam numa escuridão que se prolonga precisa ser direcionada politicamente, sem arroubos partidários ou proclamações ideológicas, sem modelos e conceitos que se perderam no tempo. Somente se viabiliza com luta democrática, empenho cívico, tolerância e cuidado nas escolhas.

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PROFESSOR TITULAR DE TEORIA POLÍTICA DA UNESP

Opinião por Marco Aurélio Nogueira

Professor titular de Teoria Política da Unesp

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