EXCLUSIVO PARA ASSINANTES
Foto do(a) coluna

O jornalista Carlos Alberto Di Franco escreve quinzenalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|Uma boa história

É fácil fazer jornalismo de boletim de ocorrência. Não é tão fácil contar histórias reais, com rosto humano, que mostram o lado bom da vida.

Foto do author Carlos Alberto Di Franco
Atualização:

A crise do jornalismo tradicional não pode ser explicada exclusivamente pelo fenômeno da disrupção digital, pelo emagrecimento da carteira de anunciantes e pela perda de leitores. Sua raiz mais profunda está em equívocos na condução do noticiário e das coberturas. O problema, frequentemente, está no conteúdo.

Pesquisas, inúmeras, dão uma pista precisa: as pessoas estão cansadas do olhar cinzento da imprensa. Ler jornal deixou de ser prazeroso. O negativismo permanente é uma forma de falsear a verdade. A vida, como os quadros, é composta de luzes e sombras. Precisamos denunciar com responsabilidade. Mas devemos, ao mesmo tempo, mostrar o lado positivo da vida. O jornal O Estado de S.Paulo, diariamente, fecha seu caderno com “uma boa história”. A iniciativa merece aplauso. É uma lufada de esperança em meio às sombras provocadas pelo ambiente corrosivo do teatro político.

A fórmula de um bom jornal reclama uma boa dose de interrogações. A candura, num país de delinquência arrogante, acaba sendo um desserviço à sociedade. A astúcia não pode ser debelada com terapias ingênuas. É indispensável o exercício da pergunta consistente, da dúvida limpa e honesta. Essa atitude, contudo, não se confunde com o marketing do catastrofismo.

Bad news are good news.” O mote, alardeado pelos militantes do jornalismo cinzento, tem produzido um excesso de matérias em lá menor. O negativismo gratuito é, sem dúvida, uma das deformações da nossa profissão. “O rabo abana o cachorro.” O comentário, frequentemente esgrimido em seminários e debates sobre a imprensa, esconde uma tentativa de ocultar algo que nos incomoda: nossa enorme incapacidade de trabalhar em tempos de normalidade.

Alguns setores da mídia, em nome de suposta independência e de autoproclamada imparcialidade, castigam diariamente o fígado dos seus leitores. Dominados pelo vírus do negativismo, perdem conexão com a vida real. O jornalismo não existe para elogiar, argumentam os defensores de uma imprensa que se transforma em exercício sistemático de contrapoder. Tem uma missão de denúncia, de contraponto. Até aí, estou de acordo. A impunidade, embora resistente, está se enfrentando com o aparecimento de uma profunda mudança cultural: o ocaso do conformismo e o despertar da cidadania. Por isso a imprensa investigativa, apoiada em denúncias bem apuradas, produz o autêntico jornalismo da boa notícia. Denunciar o mal é um dever ético.

Impressiona-me, no entanto, o crescente espaço destinado à violência nos meios de comunicação, sobretudo no telejornalismo. Catástrofes, tragédias, crimes e agressões, recorrentes como chuvaradas de verão, compõem uma pauta sombria e perturbadora. A violência, por óbvio, não é uma invenção da mídia. Mas sua espetacularização é um efeito colateral que deve ser evitado. Não se trata de sonegar informação. Mas é preciso contextualizá-la. O excesso de violência na mídia pode criar fatalismo e perigosa resignação. Podemos todos – jornalistas, formadores de opinião, estudantes, cidadãos, enfim – dar pequenos passos rumo à cidadania e à paz.

A deformação, portanto, não está apenas no noticiário violento, mas na miopia, na obsessão seletiva pelo underground da vida. O que critico não é o jornalismo de denúncia, mas o culto do denuncismo, a opção pelo sensacionalismo em detrimento da análise séria e profunda. Estou convencido de que boa parte da crise da imprensa pode ser explicada pelo isolamento de algumas redações, por sua orgulhosa incapacidade de ouvir os seus leitores.

Os anos da ditadura foram os melhores aliados da mediocridade profissional. A luta contra o arbítrio escondeu limitações e carências. A censura, abominável e sempre burra, produziu heróis verdadeiros, mas também produziu gênios de fachada. Quatro linhas de protesto, independentemente da qualidade objetiva da matéria, já eram suficientes para conferir um passaporte para a celebridade. A democracia, no entanto, tem o poder de derrubar inúmeros mitos. A estabilidade conspira contra a manchete fácil. O rabo deixa de abanar o cachorro.

Precisamos, ademais, valorizar editorialmente inúmeras iniciativas que tentam construir avenidas ou vielas de paz nas cidades sem alma. É preciso investir numa agenda positiva e propositiva. A bandeira a meio pau sinalizando a violência sem-fim não pode ocultar o esforço de entidades, universidades e pessoas isoladas que diariamente se empenham na recuperação de valores fundamentais: o humanismo, o respeito à vida, a solidariedade. São pautas magníficas. Embriões de grandes reportagens. É preciso iluminar a cena de ações construtivas, frequentemente desconhecidas do grande público, que sem alarde ou pirotecnias colaboram, e muito, na construção da cidadania.

É fácil fazer jornalismo de boletim de ocorrência. Não é tão fácil contar histórias reais, com rosto humano, que mostram o lado bom da vida. O jornalista de talento sabe descobrir a grande matéria que se esconde no aparente lusco-fusco do dia a dia. No fundo, a normalidade é um grande desafio e, sem dúvida, o melhor termômetro da qualidade. Saibamos contar boas histórias.

*

JORNALISTA. E-MAIL: DIFRANCO@ISE.ORG.BR

Opinião por Carlos Alberto Di Franco

Jornalista

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.