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Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras e ex-ministro da Justiça, Miguel Reale Júnior escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|Voto sem cabresto

Ameaça de Bolsonaro revela a intenção de deslegitimar o pleito em que pode ser derrotado

Atualização:

Por via da Emenda Constitucional 135/19 pretende-se impor o voto impresso, pois as leis que introduziam tal sistema foram consideradas inconstitucionais por violação do sigilo do voto, intocável alicerce da democracia, como consta do artigo 60, § 4.º, II, da Constituição.

Ledo engano da proponente da emenda, a deputada de extrema direita Bia Kicis, pois não é por ser emenda à Constituição, e não lei, que deixa de poder ser considerada inconstitucional se extrapola o limite material fixado nas cláusulas pétreas. Já decidiu o Supremo Tribunal Federal que emenda constitucional, emanada, portanto, de constituinte derivado, incidindo em violação à constituição originária, pode ser declarada inconstitucional, pelo STF, cuja função precípua é de guarda da constituição (Adins 939-7 DF, 926-5 DF e 466 DF).

Atribui-se ao TSE má-fé ao defender sistema eletrônico destituído de segurança e rejeitar o voto impresso. Não é verdade. O TSE até colaborou, sendo Jobim presidente, na elaboração da Lei n.º 10.048/02, por isso denominada Lei Jobim, que introduziu o voto impresso, a ser adotado nas eleições de 2004.

Em 2002, o TSE, em vista de futura implantação do voto impresso, adotou, para teste, esse sistema em 150 municípios com 19.373 seções eleitorais, correspondendo a 7.128.233 eleitores, ou seja a 6,18% do eleitorado.

Os problemas surgidos foram imensos: 1) o tamanho das filas; 2) o número de votos nulos e em branco; 3) o porcentual de urnas com votação por cédula; 4) a quantidade de urnas que apresentaram defeito, além das falhas na impressora. O TSE e os TREs, com vantagens inquestionáveis sobre o voto impresso, propuseram o registro eletrônico do voto (cédula eletrônica), que espelha a composição do voto do eleitor, sem identificá-lo.

Assim, editou-se a Lei n.º 10.740/03, que revogou a exigência do voto impresso e implantou o registro digital do voto, resguardado o anonimato do eleitor. Criou-se também comissão para acompanhamento de todo o procedimento de testagem e verificação das urnas, com técnicos indicados pelos partidos, pela OAB e pelo Ministério Público.

Mas em 2009 voltou-se a legislar para adoção do voto impresso, por via da Lei n.º 12.034, julgada inconstitucional pela ministra Cármen Lúcia na Adin n.º 4.543, em abril de 2013. Nessa decisão, pontuava a ministra: o segredo do voto foi conquista impossível de retroação e a impressão do voto fere exatamente o direito inexpugnável ao segredo. A impressão do voto é prova do seu ato. Se o ato é próprio e inexpugnável, qual a sua necessidade? Se não há que prestar contas (porque é ato personalíssimo), para que o papel?

No voto, a ministra Cármen Lúcia recorreu ao princípio da proibição do retrocesso político, que impede suprimir o direito ao voto com garantia de segredo e invulnerabilidade para retroceder a modelo superado.

Foi própria da República Velha a cédula a descoberto, para controle dos coronéis sobre o eleitor, obediente servidor a prestar contas mediante o voto de cabresto, passível de se reinstalar com o voto impresso.

Diante de nova declaração de inconstitucionalidade da lei de 2009, houve mais outra tentativa de introdução do voto impresso pela Lei n.º 13.165/2015, cuja eficácia foi cassada na Adin 5.889, por liminar de junho de 2018.

A liminar foi confirmada em julgamento de 2020. Segundo a decisão, a impressão do voto pode gerar falhas inocorrentes no voto exclusivamente eletrônico e ameaça a livre opção do eleitor em face de potencial identificação de quem escolheu quais candidatos.

Nesse julgamento, o ministro Luís Roberto Barroso, além de ressaltar jamais ter havido prova alguma de fraude no sistema eletrônico, destacou a existência de mecanismos que garantem a confiabilidade das urnas eletrônicas: 1) a transparência no desenvolvimento dos programas; 2) a realização de testes regulares; 3) o procedimento de votação paralela; e 4) a entrega de cópia dos dados processados aos partidos políticos. E alerta para a judicialização da eleição, com candidatos a solicitar recontagem pelos votos impressos, com risco de violação do sigilo.

Para verificação dessa confiabilidade se realizou Confirmação do Teste Público de Segurança (TPS) 2019 do Sistema Eletrônico, constatando-se a segurança e a plena confiabilidade da urna eletrônica.

Se, com bem diz a deputada Margarete Coelho, urnas eletrônicas garantem segurança e sigilo e o voto impresso apenas segurança (blog de Fausto Macedo, 25/5), é forçoso concluir ser impossível adotar o meio-termo do voto impresso em algumas urnas, pois é inconstitucional o risco ao sigilo do voto em qualquer porcentual.

Mas por que a insistência no voto impresso? A ameaça de Bolsonaro de não haver eleições sem tal sistema revela a intenção de deslegitimar o pleito futuro em que pode ser derrotado.

Assim, a campanha do TSE de informar a garantia do voto secreto e a lisura das eleições por meio do sistema eletrônico deve merecer integral apoio em defesa da democracia.

ADVOGADO, PROFESSOR TITULAR SÊNIOR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS, FOI MINISTRO DA JUSTIÇA

Opinião por Miguel Reale Júnior
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