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Opinião|A arte de cortar na carne

Atualização:

Considero o núcleo da crise no Brasil a dificuldade política de equacionar o problema das contas públicas. O resto é consequência. Mas a equação fiscal/política é difícil. Muitos pedem que o governo reduza as despesas, corte na carne. Mas o que significa isso? O que é necessário para, de fato, cortar na carne?

Hoje as crises política e econômica se realimentam. A situação fiscal é delicada e requer coesão política para se adotarem medidas firmes, que inevitavelmente desagradarão a poucos (ou muitos) no curto prazo, em prol de um benefício comum difuso, que só surgirá no futuro. Liderança e coesão política aqui são essenciais. Na ausência de condições políticas, a recessão se aprofunda, as receitas do governo caem e o problema fica maior. A insatisfação popular piora o clima político, fechando o círculo vicioso.

Se a economia retomasse por conta própria, aliviaria a crise. Com a volta do crescimento do PIB, a receita dos impostos aumentaria, o desemprego pararia de crescer e o governo ganharia fôlego para administrar os problemas (sim, crescimento alivia, mas não resolve tudo). Mas a economia não retomará por conta própria. A incerteza fiscal/política impede a recuperação da economia.

Enquanto não houver clareza sobre como o problema fiscal será equacionado, dificilmente o investimento se recuperará. Há um ajuste fiscal em torno de 3,5% do PIB a ser feito (e mais 0,3% ao ano, por causa do crescimento dos gastos da Previdência). É o necessário para estabilizar a dívida em condições normais de “temperatura e pressão” da economia (quando a recessão acabar e os juros voltarem ao normal). Enquanto não ficar claro que subsídios serão cortados, que impostos serão elevados, que benefícios serão diminuídos – enfim, quem pagará a conta –, vários projetos não sairão da gaveta. A atitude é esperar para ver, pois falta confiança.

Sem a volta do investimento dificilmente a economia se recupera. A melhora nas contas externas (induzida pelo câmbio depreciado) não será suficiente. O Brasil ainda é uma economia grande e fechada para que o setor externo mude o quadro por si só. O consumo não é capaz, hoje, de liderar a retomada (massa salarial em queda). A melhora nas contas externas precisaria induzir mais investimento.

Portanto, sem equacionar o fiscal, não haverá retomada da economia.

Muitos são a favor do ajuste fiscal em tese, mas ninguém está disposto a pagar essa conta salgada. Aumentar impostos? Não, a carga já é alta demais. Cortar subsídios? Não, são “meritórios”. Cortar aumentos de salários ou benefícios? Não, eles são “justificados”. Mas ninguém define o que seja “meritório” ou “justificado”. O pedido coletivo é que o governo reduza seus próprios gastos, corte na própria carne. Mas como?

A intuição é que há espaço para cortar, já que se gasta 40% do PIB e a população não recebe os serviços públicos adequados. A percepção (correta) é que deve haver ineficiências que, se forem corrigidas, resultarão em economia de preciosos recursos. A boa gestão pública é essencial para o ajuste fiscal no longo prazo e para a sensação de direito e justiça no País.

O combate às ineficiências é um processo longo e requer mudanças de incentivos e regras. É urgente começar imediatamente. Mas os resultados virão no longo prazo. Para retomar a economia e sair dessa crise será necessário de fato escolher entre aumento de impostos, corte de gastos e/ou benefícios.

Afinal, muito do que denominamos despesas do governo são apenas transferências entre cidadãos, Estados e municípios: o governo apenas arrecada de um e transfere para outro.

Mas como cortar as despesas?

Infelizmente, o ajuste fiscal pelo corte em despesas discricionárias – que podem ser manejadas no curto prazo, sem mudanças nas leis – não é suficiente. O orçamento público é engessado por despesas garantidas por lei, que tendem a crescer no longo prazo. Hoje, cerca de 75% do gasto do governo federal é obrigatório (por exemplo, com Previdência, renda mensal vitalícia, pessoal). Outros 10% estão indexados à receita, como o gasto de custeio em saúde e educação. Menos de 15% das despesas são discricionárias. Se cortar metade dos gastos discricionários, a economia será de apenas 1,2% do PIB.

Na ausência de reformas, um ajuste unicamente pelo lado das despesas para ajustar 3,5% do PIB parece dramático. Não bastaria ter uma reavaliação total do programa Minha Casa, Minha Vida e do investimento, cortes na contratação e reajustes de pessoal, fortes ajustes nos critérios de concessões de diversos benefícios e outros (veja detalhes em artigo recente meu com Luka Barbosa). Para cortar gastos de fato é preciso uma ampla revisão nas regras que determinam os gastos, reavaliação das despesas sociais e do tamanho do Estado. Sem isso a tendência dos resultados fiscais é seguir em trajetória de queda. Também é necessário permitir que o governo tenha controle sobre as despesas por meio da desvinculação das receitas das despesas, ampliando o escopo do projeto no Congresso (Desvinculação das Receitas da União), que propõe desvinculação de 30% das receitas oriundas das contribuições sociais e econômicas.

A reforma mais importante é a da Previdência, cujo gasto cresce 0,3% do PIB ao ano, o que não é sustentável. Será necessário aumentar a idade média de aposentadoria (alinhando com a expectativa de vida maior e a capacidade de pagamento) e desvincular o piso do benefício previdenciário do aumento do salário mínimo (que tem crescido acima da inflação). Para estabilizar os gastos previdenciários como proporção do PIB seria preciso que a idade mínima de aposentadoria fosse ajustada para 65 anos (hoje, cerca de 35% das pessoas se aposentam por tempo de contribuição com 55 anos) e o reajuste aos aposentados fosse em linha com a inflação.

Em suma, para o governo cortar na própria carne e realizar um ajuste fiscal de 3,5% do PIB serão necessários não só cortes dramáticos em várias despesas discricionárias do governo, mas também a aprovação de reformas importantes no Congresso. Algo me diz que, infelizmente, vamos continuar discutindo aumento de impostos.

* ILAN GOLDFAJN É ECONOMISTA-CHEFE E SÓCIO DO ITAÚ UNIBANCO

Opinião por ILAN GOLDFAJN