17 de agosto de 2015 | 03h00
Para que funcionem são necessários eletricidade e combustíveis. Quase metade de toda a energia que a humanidade consome é usada em transporte e derivados de petróleo (gasolina e óleo diesel) são usados para isso.
Sucede que petróleo é um produto fóssil, herança do passado, que se originou há centenas de milhões de anos a partir de produtos orgânicos como florestas e vida marinha. Só existe em quantidades finitas e apenas em alguns países. Fatalmente, acabaremos por esgotar essa herança e daí a necessidade de procurar substitutos para a gasolina e o óleo diesel, o que a ciência moderna está fazendo com sucesso.
Um dos países em que isso está ocorrendo, hoje, é o Brasil, onde a cana-de-açúcar cresce bem e da qual se pode produzir álcool (etanol), que é um excelente substituto da gasolina. Álcool de cana é produzido no País - e usado como bebida - desde que os portugueses aqui chegaram, há mais de 500 anos. Produzi-lo em grandes quantidades e a um custo que lhe permita competir com a gasolina é outra coisa, mas conseguimos fazê-lo e assumir a liderança mundial nessa área nas últimas décadas.
O etanol é renovável porque cana é um produto agrícola que cresce todos os anos e não é poluente como a gasolina. É como se fosse energia solar transformada num líquido.
Os Estados Unidos, com todo o seu poder econômico e tecnológico, tentaram repetir o sucesso do Brasil nessa área, nos últimos anos, usando milho como matéria-prima (já que cana-de-açúcar não cresce bem em seu território), mas não tiveram grande sucesso.
Qual é, pois, a odisseia do etanol? Isto é, quais são as aventuras e peripécias que ele atravessou, que lembram a lenda clássica sobre as viagens de Ulisses, o herói grego, que duraram dez anos?
A primeira parte da odisseia diz respeito às políticas equivocadas adotadas pelo governo federal nessa área desde 2008. A partir desse ano, a área econômica do governo “congelou” o preço de venda da gasolina no País como um dos instrumentos usados para combater a inflação, com resultados desastrosos para a Petrobrás. Até então, a produção de etanol havia atingido cerca de 25 bilhões de litros por ano no Brasil. E parecia capaz de se expandir, não só nacionalmente, como em vários outros países que são grandes produtores de cana-de-açúcar, na América Central, na África do Sul e na Índia. Poderia tornar-se um produto que seria exportado para a Europa e os Estados Unidos, onde sua produção é mais cara.
Como resultado, a Petrobrás viu-se forçada a importar gasolina a preços internacionais e vendê-la a um preço mais baixo no País, o que causou prejuízos de muitas dezenas de bilhões de reais para a empresa. Uma vítima colateral dessa política foi o etanol, cujo preço é indexado ao da gasolina.
O governo pode controlar o preço da gasolina, mas não consegue evitar o aumento de outros custos, nem a inflação, e com isso tornou inviável a expansão da produção de etanol. Das 450 usinas existentes, cerca de 100 delas enfrentaram sérios problemas e muitas faliram. Em retrospecto, o comportamento do governo nessa questão parece incompreensível e fruto de idiossincrasias pessoais e ideológicas de algumas das autoridades federais envolvidas.
Em suma, o que nos anos iniciais do governo Lula parecia ser um dos carros-chefes do desenvolvimento nacional - a produção de um combustível limpo e que contribuiria para a sustentabilidade do planeta, além de gerar mais de 1 milhão de empregos diretos - teve de lutar duramente para sobreviver.
A segunda parte da odisseia são as barreiras alfandegárias e não alfandegárias que os países da Europa introduziram para evitar que o Brasil conquistasse o seu mercado de etanol. As barreiras não alfandegárias baseiam-se em argumentos que envolvem cientistas e provocaram grandes controvérsias, tais como:
A expansão da produção de etanol no Brasil é, de fato, uma das causas do desmatamento na Amazônia?
A produção de cana reduz a produção de alimentos e contribui para aumentar a fome no mundo?
Substituir gasolina por etanol reduz realmente a emissão de gases que provocam o aquecimento global?
Para esclarecer essas questões a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), em cooperação com a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), preparou um estudo envolvendo 137 especialistas de 29 países e 82 instituições científicas, que prepararam um relatório de quase 800 páginas esclarecendo cada uma dessas questões (http://bioenfapesp.org/scopebioenergy/index.php).
O relatório é intitulado Bioenergia e Sustentabilidade e tem sido apresentado em conferências internacionais em vários países (inclusive no Banco Mundial). Esse documento deverá tornar-se a obra de referência mais atualizada nessa área e provavelmente terá papel importante em esclarecer e eliminar as barreiras não alfandegárias que têm sido levantadas contra o programa do etanol brasileiro.
A odisseia do etanol está, portanto, ao que parece, atingindo um fim com boas possibilidades de recuperação. O trabalho dos cientistas que prepararam o relatório da Fapesp é uma importante contribuição para que isso ocorra.
* PROFESSOR EMÉRITO DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO, FOI SECRETÁRIO DE CIÊNCIA E TECNOLOGIA DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA
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