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Opinião|A Comissão da Verdade e a revisão da anistia

Atualização:

Ao final do regime militar, o Congresso Nacional aprovou a Lei n.º 6.683/79, que anistiou "a todos quantos, no período compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexos com estes". Teotônio Vilela, presidente da comissão do anteprojeto da Lei da Anistia, escutou o povo brasileiro sobre a proposta e se, apesar de não atender inteiramente às reivindicações dos movimentos de anistia, era suficiente para a pacificação nacional. Não é, porém, a Lei n.º 6.683/79 a responsável pela viragem histórica brasileira, mas a Emenda Constitucional 26/85, que convocou a Assembleia Constituinte e concedeu anistia "a todos os servidores públicos civis da administração direta e indireta e militares, punidos por atos de exceção, institucionais ou complementares", aos "autores de crimes políticos ou conexos" e aos "dirigentes e representantes de organizações sindicais e estudantis" por fatos compreendidos entre setembro de 1961 e agosto de 1979. A justaposição da Lei da Anistia com a emenda de convocação da Assembleia Constituinte e com o texto constitucional aprovado espelha o amplo e livre consenso nacional quanto às atrocidades dos militares e militantes ao tempo do regime. Nas atas das reuniões das comissões e nas votações, não há notícia de interferência militar. Aliás, a pressão partiu de forças e grupos sociais mobilizados e articulados. Na Ata da 12.ª Reunião da Comissão da Soberania e dos Direitos e Garantias do Homem, os deputados Paulo Cunha, João Menezes, Jose Paulo Bisol e Farabulini Jr. falam da pacificação da família brasileira. O sentido sempre foi o da anistia ampla, geral e irrestrita, não conformada para o revanchismo, mas resultado de singular momento de pacificação nacional. Farabulini Jr. aplaude o relatório de Bisol porque, não obstante "a tortura um ponto negro na história desta nação e do mundo, no entanto, V. Ex.ª não pretendeu a revanche. No seu relatório, inclusive, eliminou a prisão perpétua para esses criminosos". A preocupação de Bisol é compor o novo texto constitucional com a Lei n.º 6.683/79, a suprir "as deficiências, as omissões, as lacunas da legislação em vigor". No ano seguinte, Bisol integrou chapa de Lula à Presidência. A ampla conciliação nacional da Constituinte de 1988, a contemplação possível dos plúrimos interesses nacionais e a recomposição ideológica do Estado brasileiro buscaram a estabilização política e o concerto da Nação. Lembre-se o grande lastro social do movimento militar revolucionário (As Marchas da Família com Deus e pela Liberdade), depois perdido no arbítrio. Por isso, importa prevenir "reconfigurações ou deslocamentos de sentido" histórico, como assinala Daniel Aarão Reis Filho, que demonizam as forças de direita e glamorizam as de esquerda: "Um primeiro deslocamento de sentido, promovido pelos partidários da anistia, apresentou as esquerdas revolucionárias como parte integrante da resistência democrática, uma espécie de braço armado dessa resistência. Apagou-se, assim, a perspectiva ofensiva, revolucionária, que havia moldado aquelas esquerdas. E o fato de que elas não eram de modo nenhum apaixonadas pela democracia, francamente desprezada em seus textos". A anistia significou o esquecimento dos delitos dos agentes estatais e dos resistentes, dada a motivação político-ideológica, valendo a Lei n.º 6.683/79, como decidiu o STF, a emenda convocatória e o texto final da Constituição de1988. Só por isso, aos militantes a anistia alcançou os delitos de terrorismo, sequestro, atentado pessoal e assalto - portanto, crimes contra o patrimônio, crimes contra a população civil, crimes mesmo contra a humanidade -, consumados em território urbano ou rural. Assim, a anistia foi instrumento político voltado à ampla pacificação das forças políticas e sociais depois do regime (1980) e da redemocratização plena do País (1988). Recepcionada a Lei da Anistia de 1979 em favor de perseguidores e perseguidos, foi disciplinada juridicamente sob esse espírito conciliador pelo constituinte. O fenômeno não é, pois, autoanistia, mas legítima manifestação da vontade popular. É equivocado invocar a Convenção Americana sobre Direitos Humanos ou decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Julia Gomes Lund e outros ("Guerrilha do Araguaia"), segundo a qual os crimes contra a humanidade dos agentes estatais na ditadura devem ser investigados e os agentes, processados e punidos. Adesão à Convenção Americana e decisão de corte internacional não prevalecem sobre a decisão livre e soberana, em contexto de conciliação nacional, do povo reunido em Assembleia Constituinte plenamente legitimada e democrática. A pacificação nacional proposta pelo governo militar aprovada no Congresso (Lei da Anistia) recebeu a chancela mais abrangente do povo em Assembleia Constituinte (Constituição de 1988) e em período histórico logo subsequente, situação em tudo diferente da ocorrida no Chile ou no Peru. É equivocado interpretar a anistia com foco fechado na Lei n.º 6.683/79. Impõe-se conjugar esse diploma com a evolução histórica, jurídica e política subsequente (constituinte). Assumirem as esquerdas o comando em governos da América Latina não autoriza o modismo persecutório do revisionismo, privilegiando os perseguidos políticos, autores igualmente de crimes contra a humanidade. A anistia, em sua mais legítima vocação, é ampla, geral e irrestrita. Implica completo e definitivo esquecimento dos crimes de determinado período histórico, a alcançar todos os agentes e abranger as consequências jurídicas em todos os planos. O revisionismo atende, assim, a grupos episodicamente no poder, sob o rótulo muito conveniente, sedutor e generoso dos direitos humanos, estes, porém, solenemente desprestigiados pela esquerda revolucionária como testemunham as atrocidades e violações dos atos extremos de terrorismo de esquerda. * É PROFESSOR LIVRE-DOCENTE DA FACULDADE DE DIREITO DA USP

Opinião por David Teixeira de Azevedo