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A corrupção na perspectiva histórica

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Por Boris Fausto
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A mídia vem cumprindo, dia após dia, o importante papel de denunciar os escândalos da corrupção. Aqui, coloco um grãozinho numa linha de raciocínio que busca aprofundar o entendimento do problema. Começo pelo conceito de corrupção, que não pode ser confundido com a prática de infrações penais sem a interveniência de um agente público, como sujeito ativo ou passivo. Exemplificando, um crime de sequestro é hediondo, mas não envolve corrupção; um "agrado" a um policial de trânsito para que não aplique a lei constitui corrupção, apesar de ser uma infração muito menos grave. Deixo de lado a corrupção miúda e me concentro nas grandes ações, pois as diferenças entre o varejo e o atacado são enormes. Falo, pois, do conluio entre grandes empresas e governantes na contratação de obras públicas; das benesses ilegais a parlamentares, venham de onde vierem; dos desvios de verbas públicas para bolsos privados e de toda uma série de delitos que fazem parte do pão nosso de cada dia. Uma percepção corrente aponta a eternidade da corrupção em nosso país, invocando as raízes da formação ibérica, em que imperaram as relações sociopolíticas patrimonialistas e, portanto, a indistinção do patrimônio público e do privado. Uma decorrência dessa perspectiva é o fatalismo que tende a acompanhá-la. Se esse e outros problemas graves do País estão inscritos no seu DNA, as possibilidades de superá-los seriam remotas, na melhor das hipóteses. Mas não se pode entender a corrupção dos dias de hoje sem levar em conta a perspectiva histórica. Não se trata de desconsiderar as raízes da nossa formação, mas de ir além delas, pois as instituições, as percepções culturais, a própria definição do que constitui corrupção se movem ao longo do tempo. Passo a uma recorrente pergunta. Vivemos numa época em que a corrupção chegou a níveis impensáveis no passado ou apenas ela se tornou mais conhecida, pela atuação da mídia e pelos esforços das autoridades para reprimi-la? Não tenho dúvidas de que tudo cresceu; a corrupção, que ganhou formas e alcance inéditos, assim como sua denúncia e repressão. Num sumaríssimo percurso da História do País, tomando como época inicial a Primeira República (1889-1930), observo que a elite política da época raramente foi acusada de práticas corruptas. Exemplo extremo, o último dos presidentes do período, Washington Luís, depois de deposto, partiu para o exílio, vivendo no exterior com crescentes dificuldades financeiras. Porém, ao mesmo tempo, quase todas as figuras políticas da época foram coniventes com a fraude eleitoral - um signo aberrante de corrupção política, combatido pelas frágeis forças de oposição. Após a Revolução de 1930 e a chegada ao poder de Getúlio Vargas, a corrupção começou a ganhar força e novas formas, para isso concorrendo as possibilidades abertas pelo processo de industrialização. Mas o maior salto e a nítida transformação do problema se deram a partir da construção de Brasília. De um lado, pelos arranjos, nada transparentes, entre o governo e as grandes construtoras, cujo crescimento vem dessa época. De outro, o isolamento dos Poderes da República no Planalto Central facilitou a emergência de um mundo de fantasia e a formação de um clube misto de oligarcas e de arrivistas, distintos dos "homens comuns", guardadas as exceções de sempre. Depois, os tempos recentes da financeirização da vida econômica introduziram um quadro facilitador de toda sorte de manobras especulativas, algumas delas ilegais, às vezes com o beneplácito de agentes público. Do ângulo da população, é frequente ouvir dizer que a grande massa é indiferente a práticas condenáveis se seu bolso estiver um pouco menos vazio do que habitualmente acontece. O quadro atual alicerça, em parte, a veracidade dessa percepção, mas só em parte. Quem primeiro associou a moralização do governo e da sociedade com práticas populistas foi Jânio Quadros, cuja vassoura simbólica lhe proporcionou uma rápida ascensão, sustentada pelo voto popular. Fernando Collor saiu do anonimato com o anúncio da caça aos marajás e as acusações de irregularidades do então presidente Sarney. Que ambos tenham desiludido, estrepitosamente, a grande maioria dos eleitores ajuda a compreender as inclinações mais recentes da massa popular, alheia aos escândalos de toda sorte, às alianças políticas mais espúrias, desde que obtenha benefícios em suas limitadas condições de vida. Seria equivocado negar os avanços institucionais e das medidas repressivas. A fraude eleitoral tornou-se praticamente coisa do passado; os esforços no sentido de apurar a responsabilidade das redes de corrupção são evidentes; a lavagem de dinheiro, obtido de forma ilícita, tornou-se bem mais complicada, etc. Mas os avanços ocorrem em ritmo lento, enquanto a atividade corruptora segue em alta velocidade. Denúncias e processos se multiplicam, enquanto as punições são raras ou tardias. Sem entrar em propostas específicas no sentido de enfrentar esse quadro, lembro alguns objetivos amplos. Em primeiro lugar, o fortalecimento das instituições públicas, tornando-as cada vez mais estáveis e não tão dependentes deste ou daquele governo. Na outra ponta, a noção de responsabilidade social dos dirigentes das grandes empresas, que pouco a pouco se vai firmando. Ao mesmo tempo, a luta pela construção de uma sociedade em que a prática da corrupção seja limitada (em algum grau ela sempre existirá) depende de uma combinação de fatores. Um deles é a repressão e a punição eficazes, que teriam um efeito extraordinário no conjunto da vida social. Outro é o da transformação da nossa cultura transgressora, indispensável tarefa de longo prazo. Boris Fausto, historiador, presidente do Conselho Acadêmico do Grupo de Conjuntura Internacional (Gacint-USP), é autor, entre outros livros, de História do Brasil (Edusp)