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Opinião|A democracia na América Latina sob juízo

Atualização:

No recém-divulgado Índice Democrático da Economist Intelligence Unit (EIU), o desempenho da América Latina é preocupante. Apenas um país, o Uruguai, é classificado como “democracia madura”. A Costa Rica cai para a categoria de “democracia com falhas”, onde estão situados o México e o Brasil, que perderam posições. A avaliação poderia ser ainda mais desabonadora, não fosse o bom resultado de vários países latino-americanos no indicador relativo à qualidade da Justiça Eleitoral. A nota do Brasil é alvissareira: 9,58. Somente cinco países no mundo pontuam acima.

Como outras tentativas de aferir a democracia a partir de um conjunto determinado de variáveis, a avaliação da EIU é passível de críticas. Mas tem o mérito de refletir leitura comum aos observadores da conjuntura política latino-americana. Convergimos em que a região tem deixado sem resposta questões cruciais para o futuro de suas experiências democráticas. Como atualizar os modelos de representação, reforçando sua ressonância social e a legitimidade da ação pública? O que fazer para assegurar um Estado mais eficiente e responsável perante o corpo social? Por quais vias avançar na democratização dos partidos políticos, resgatando seu papel de mediação entre a sociedade e o poder público, função que eles hoje partilham com novas instâncias e novos atores coletivos? É factível pôr freios ao sequestro da política pelo poder econômico, zelando pela preeminência do interesse público?

Em alguns redutos, o discurso da renovação democrática revestiu-se nos últimos anos de um tom regressista. Em nome da busca por modelos menos oligárquicos e mais inclusivos, pregou-se uma suposta antinomia entre mudança social e democracia representativa. Postularam-se novas institucionalidades, que, com viés plebiscitário, negligenciaram princípios como a independência dos Poderes e o respeito às liberdades e garantias fundamentais.

Se o discurso regressista parece em refluxo, com a vitória da oposição nas eleições venezuelanas e a derrocada de forças afins, como o kirchnerismo, há problemas que se intensificam e afetam a região do Rio Grande à Terra do Fogo. Podem ser agrupados em duas ordens.

A primeira diz respeito ao impacto da crise econômica sobre os padrões de coesão social. Com o fim do ciclo expansionista alimentado pelo elevado preço das commodities, escassearam os meios de sustentação dos largamente difundidos programas de transferência de renda e do crédito fácil. As camadas emergentes perderam a perspectiva imediata de continuada ascensão social. Não foram poucos os que atribuíram à insatisfação desses grupos o estopim das manifestações multitudinárias que ocorreram no Brasil e em outros países latino-americanos em 2013.

É certo que os manifestantes de São Paulo ecoaram bandeiras das “redes de indignação e esperança” (na denominação de Manuel Castells) que se multiplicaram após o movimento dos indignados, como o desencanto com a política tradicional. Mas traziam como distintivo o pleito por melhores condições de vida, que continuará desatendido, no Brasil e alhures, enquanto perdurar a crise fiscal do Estado.

Só que a agenda das sociedades latino-americanas vai além da reivindicação de serviços de infraestrutura de qualidade. Inclui bandeiras que implicariam um verdadeiro aggiornamento institucional. Querem segurança pública, repressão ao crime organizado, transparência na gestão pública, órgãos de controle efetivos, prestação criteriosa de contas pelos agentes públicos, extinção do patrimonialismo, fim de práticas lesivas ao erário, combate à corrupção e à impunidade – enfim, uma plêiade de postulações que não podem ser atendidas sem uma ação concertada do Estado com a cidadania. É esse déficit institucional que justifica diagnósticos negativos como o do EIU.

Mas a exceção apontada pelo Índice Democrático merece destaque. Após mais de duas décadas à frente do escritório regional do Instituto para a Democracia e a Assistência Eleitoral (Idea), sinto-me à vontade para confirmar que a Justiça Eleitoral latino-americana, salvo casos tópicos, como o venezuelano, navega na contracorrente. Os tribunais eleitorais têm efetivamente advogado a adoção de boas práticas e normas, desde o emprego de novas tecnologias a serviço de maior transparência nas eleições até o zelo pela equidade nas disputas eleitorais. Basta ver o caso brasileiro, que se tornou referência mundial no recurso ao voto eletrônico. Como não depor a favor de um modelo que, no primeiro turno das eleições de 2014, permitiu que 93,9% dos votos já estivessem apurados uma hora após o fechamento das urnas, sem qualquer evidência de fraude? Como não saudar os avanços na identificação biométrica, que eliminará o risco de voto repetido e facultará a implantação de um registro nacional único? Para não mencionar a judiciosa regulação pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) do acesso de partidos e candidatos aos meios de comunicação.

A Justiça Eleitoral brasileira tem apontado, ademais, a magnitude do desafio representado pela regulação do financiamento eleitoral. As cifras postas à disposição pelo TSE sobre o peso do financiamento por empresas revelam contribuições que chegam a exceder dezenas e até centenas de milhões de dólares em uma só campanha eleitoral. É um fenômeno sem par no contexto regional e quiçá no mundo. A anomalia é suficientemente eloquente para justificar uma correção de rumos, como a que foi adotada pelo Supremo Tribunal Federal, sob petição da Ordem dos Advogados do Brasil, restringindo o financiamento privado a pessoas físicas. Não será simples o ajuste das planilhas partidárias para as eleições municipais de outubro próximo. Mas o importante é que se deu um passo importante para a afirmação da autonomia da política. E ocorreu, como deve ser, pela ação conjugada do Estado com a sociedade.

* DANIEL ZOVATTO É DIRETOR REGIONAL PARA A AMÉRICA LATINA E O CARIBE DO INSTITUTO PARA A DEMOCRACIA E A ASSISTÊNCIA ELEITORAL (IDEA)

Opinião por DANIEL ZOVATTO