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A derrota de 'Merkozy'

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Por Redação
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Na primeira eleição em um país europeu do clube dos ricos onde o candidato da oposição se concentrou em atacar o corte do gasto público como remédio para a crise da dívida, a política se impôs às considerações econômicas - e a legitimidade do receituário ortodoxo é que entrou em crise. De fato, a vitória do socialista François Hollande sobre o presidente de centro-direita Nicolas Sarkozy no segundo turno de votação na França exprime um desejo de mudança que ultrapassa as fronteiras nacionais. "A austeridade não tem por que ser uma fatalidade para a Europa", resumiu Hollande no discurso de comemoração. "Minha missão é dar à construção europeia uma dimensão de crescimento, emprego e prosperidade."Ele derrotou Sarkozy por apenas 3,2 pontos porcentuais de diferença, um terço da vantagem que as pesquisas chegaram a lhe dar imediatamente depois do primeiro turno. Foi como se na hora da decisão uma parcela do eleitorado confirmasse o clássico dito de que os franceses têm o coração à esquerda e a carteira à direita. O medo, portanto, fez a sua parte. É verdade também que muitos rejeitaram por igual as políticas do presidente e as suas características pessoais - se não mais essas do que aquelas. A França e a Europa, de todo modo, consideram irrefutável o êxito de Hollande e se voltam desde logo para a questão-chave do diálogo entre ele e a chanceler alemã, Angela Merkel.Desde a eclosão da crise da dívida nos países do euro, da qual tiveram de ser resgatados, sucessivamente, Irlanda, Grécia, Portugal, Espanha e Itália - ao preço de um aperto fiscal que se traduziu em recessão, desemprego, desmanche de benefícios sociais, quebra de arrecadação e, portanto, diminuição ainda mais acentuada do poder de intervenção dos Estados nacionais -, o eixo Paris-Berlim, apropriadamente apelidado Merkozy, foi o que tornou o garrote possível. A adesão do presidente francês foi essencial para levar adiante o pacto da austeridade proposto pela líder alemã, cujo aspecto mais citado é a limitação dos déficits orçamentários nacionais, ad perpetuam, a 3% do PIB a partir do ano que vem. Embora o próprio Hollande tenha se comprometido com a meta de déficit zero em 2017, ele bateu o tempo todo da campanha na tecla de que o acordo europeu tem de ser reescrito para incluir medidas de estímulo ao crescimento. Os eurocratas sustentam que estas dependem do prévio cumprimento das políticas fiscais que devolvam aos mercados financeiros a confiança na capacidade dos Estados de pagar as suas dívidas. Para o governo alemão, como fez saber ontem a chanceler Merkel, a renegociação do pacto assinado por 25 dos 27 sócios da União Europeia é tão inviável como o que em Berlim se denomina, depreciativamente, "crescimento por déficits", em vez do modelo alemão de "crescimento por reformas estruturais".Falta combinar com os eleitores. No mesmo domingo da derrota de Sarkzoy, a coligação de Merkel perdeu o controle do governo de Schleswig-Holstein, no norte da Alemanha. No fim da semana o desafio será na Renânia do Norte-Westfalia, o mais populoso Estado alemão. Isso ainda não é nada perto do "voto da ira" na Grécia, também anteontem. Os dois principais partidos cederam espaços significativos para a nova coalizão de esquerda Syriza (com 16,6% dos votos) e, o pior de tudo, para o partido assumidamente neonazista Aurora Dourada (cujos 6,9% lhe darão pela primeira vez acesso ao Parlamento). No quinto ano consecutivo de recessão, a rebelião contra o establishment político e as medidas de austeridade não deve surpreender.Se a eleição grega aponta para mais instabilidade e impasses, a da França indica um deslocamento do equilíbrio europeu de poder, a que a política econômica dominante na área não ficará imune. O que François Hollande fez, afinal, foi trazer para o centro da arena política nas democracias - o debate eleitoral - o profundo descontentamento que percorre o Continente contra a "ditadura dos mercados". Um efeito dominó de rejeição do rigor fiscal nas urnas parece provável. O primeiro teste será o referendo irlandês sobre o pacto da austeridade, em junho. O "não" cresce a olhos vistos nas pesquisas.