Imagem ex-librisOpinião do Estadão

A deserção do premiê sírio

Exclusivo para assinantes
Por Redação
3 min de leitura

A defecção do primeiro-ministro sírio, Riyad Farid Hijab, que fugiu com a família para a Jordânia na madrugada de segunda-feira e se declarou "um soldado da abençoada revolução" contra o ditador Bashar Assad, importa menos pela função que exercia do que por revelar o estado crítico das entranhas do regime. Nele, o cargo de chefe de governo é decorativo. Como em toda autocracia, o chefe de Estado é quem manda e desmanda, e o organograma do governo não espelha a elite do poder. No caso de Assad, o círculo familiar, os comandantes do aparato de segurança, os dirigentes do partido oficial Baath e os seus correligionários alauitas (seita a que pertence apenas 12% da população).Mas Hijab não era uma figura de proa qualquer. Chefe de uma família próxima do regime desde os tempos de Hafez Assad, o seu fundador, amigo pessoal de Maher - o temível irmão de Bashar -, foi governador provincial e era ministro da Agricultura até junho último. Principalmente, é sunita, como 70% dos sírios. Essa condição servia a Bashar, como servira ao pai, para dar à tirania um verniz de unidade etnorreligiosa, que incluía ainda a minoria cristã. Essa ficção acaba de desmoronar - já não bastasse o fato de ser também sunita a maioria das cerca de 40 altas autoridades, diplomatas e oficiais superiores que romperam com a ditadura.A lista, da qual já constavam dois embaixadores, o vice-chefe de inteligência da Força Aérea, o inspetor-chefe do Ministério da Defesa e o comandante de uma brigada da Guarda Republicana, agora inclui, além de Hijab e de dois outros membros do Gabinete, o general que chefiava o equivalente sírio da KGB soviética, o Serviço de Informação da Segurança Pública. Acrescentem-se às fugas o atentado de 18 de julho ao QG militar de Damasco que matou quatro altas patentes e a incursão de anteontem à sede da TV estatal, e o quadro não deixa dúvidas: as defesas do regime estão cada vez mais porosas, e aumenta o número daqueles que colaboram em surdina com a oposição, esperando a vez de debandar.Observadores comparam a rarefação do núcleo leal a Assad ao isolamento do ditador líbio Muamar Kadafi, às vésperas de sua fuga, captura e execução. Mas ainda parece temerário dizer que os dias de Assad estão contados. A sua queda é certa. Como e quando é que são elas. O Exército segue controlando Damasco e castiga impiedosamente, com caças e blindados, as posições rebeldes em Alepo, a maior cidade do país. As chances de uma mudança negociada de governo ou jamais existiram ou, como acredita o ex-mediador da ONU e da Liga Árabe para a Síria Kofi Annan, foram desperdiçadas. Na semana passada, quando desistiu da missão de que tinha sido incumbido em fevereiro, o diplomata ganês que já dirigiu a ONU chegou ao limite da franqueza possível na sua profissão.Em um artigo no Financial Times de Londres, reproduzido ontem no Estado, ele acusa todos quantos, "dentro e fora da Síria", promovem "suas próprias agendas estreitas por meios militares", em detrimento de uma solução política pacífica. "Ao contrário de algumas alegações", ressalta, o governo sírio aderiu ao cessar-fogo preconizado no seu plano de seis pontos para a crise. Sem respaldo internacional à oportunidade, e "percebendo que não haveria consequências", Damasco "recomeçou a usar armas pesadas em cidades". Pior ainda foi o anticlímax que se seguiu à reunião dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança em Genebra, a 30 de junho. Instados por Annan, Estados Unidos, Grã-Bretanha, França, Rússia e China chegaram então a um acordo que talvez pudesse interromper a sangria na Síria.Negociações entre as partes em conflito - ainda sob Assad - levariam a um governo de transição, com quadros do regime, mas sem o ditador. As potências ocidentais, porém, tornaram a propor sanções a Assad, vetadas pela Rússia, e a insinuar uma intervenção armada na Síria (onde, segundo o New York Times, a CIA dá "apoio logístico" à insurgência). O país "ainda pode ser salvo da pior calamidade", escreveu Annan. Nem ele deve acreditar nisso.