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A diferença entre servir à Pátria e servir-se dela

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Por José Neumanne
4 min de leitura

Esses escândalos no Senado propiciam uma ótima oportunidade para "passar o País a limpo" e "mudar tudo o que está aí", como pregava o PT de Lula quando se fingia de PV (um partido de vestais). A existência de decisões secretas que produzem gastos públicos para pagar privilégios privados caracteriza a traição do princípio elementar da transparência, sem o qual é impossível o cidadão saber como o Estado usa o dinheiro que lhe toma na forma de impostos. A clandestinidade é uma maneira aceitável de desafiar a lei se acoberta grupos políticos que combatem alguma tirania, mas inaceitável se ocorre numa instituição republicana, que exerce um poder de representação da cidadania. No caso, o benefício da clandestinidade aprofunda a crise da representatividade, passando o Congresso de clube privado a bando mafioso. Dois episódios recentes ilustram a malsã confusão vigente - na Monarquia e nas Nova e Velha Repúblicas, no Estado Novo e na democracia liberal de 1946, na ditadura militar e na atual gestão petista - entre a coisa pública e a vida privada. Ao se defender, da tribuna do Senado, com voz tatibitate e trêmula (favor não confundir com embargada), o presidente da Casa (e ex da República) disse que a crise não era dele mesmo, mas da instituição. E cobrou mais respeito por tudo quanto teria feito pela Pátria. Suas frases gaguejadas encontraram eco na voz rouca e solícita do "absolvedor-geral da República", o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que se arvorou a subverter o conceito basilar sobre o qual está erigida a nossa e qualquer outra ordem institucional democrática que se preze - o de que "todos são iguais perante a lei". Como o Senado não é uma vaga entidade, mas uma instituição representativa da sociedade, composta por membros eleitos pela cidadania, a crise que o atinge é de todos os brasileiros, em particular dos senadores e, mais em particular ainda, de quem o preside. Se nem isso Sarney conseguiu aprender em tantos anos de "serviço" público, a coisa pode ser mais grave do que parece. Mas absurdo maior que tentar fugir da responsabilidade de enfrentar a crise é se pretender acima da lei, como Sarney disse ser, da tribuna. E Lula avalizou, direto do Casaquistão, onde foi fotografado envergando um bizarro traje que trouxe à lembrança fantasias carnavalescas do Baile do Municipal, quando havia. Não há ninguém acima da lei: não estava, por exemplo, o heroico garoto que impediu a inundação dos Países Baixos pondo o dedo no buraco do dique. Isso não evita que este redator banque o advogado do diabo e pergunte ao presidente do Senado a que serviços ele se referiu quando avocou a inimputabilidade: os que prestou à ditadura militar, presidindo o partido por meio do qual ela pretendeu se legitimar, ou ao doce constrangimento com que assumiu o cargo máximo no lugar do presidente morto da dita Nova República? Lula, sim, pode-se gabar de ter sido herói da Pátria quando ajudou a derrubar a longa noite dos porões, comandando operários em greve que desmancharam a frágil ordem legal vigente do regime dos quartéis. Nem isso lhe dá, contudo, o direito de se conceder ou transferir a outrem a condição de inimputável, que no império da lei simplesmente inexiste. Na condição de conciliador das elites dos bacharéis e patriarcas de antanho com as elites de ex-guerrilheiros e sindicalistas de hoje, e principal beneficiário de seu pacto solidário - como demonstrou, com invulgar brilho, o cientista político Leôncio Martins Rodrigues, neste jornal, anteontem (pág. D2) -, o presidente nada de braçadas nesse incidente. Pois tira proveito da desmoralização do Legislativo, da qual se beneficia legislando em seu lugar, ao mesmo tempo que socorre seus maiorais para continuar tendo-os a seu serviço e sob seu cutelo magnânimo. Mais que as palavras do pecador irredutível e de seu caprichoso absolvedor, trouxe notícia recente a evidência que não faltava da mistureba de público e privado que a aliança da porteira do curral de votos com a porta de fábrica fortalece neste nosso Brasil varonil. A governadora do Maranhão, Roseana Sarney, herdeira do patriarca, dar ao contribuinte a subida honra de pagar o salário de seu mordomo é a prova mais deslavada de que, para seu clã, prestar serviços à Pátria é permitir que os patriotas lhe paguem os serviçais. Nesta rede de termos que se cruzam e se explicam entre si, é significativo que o cargo exercido pelo servidor na casa da governadora maranhense em Brasília seja o de mordomo - raiz etimológica do neologismo mordomia, usado para designar os privilégios das castas política e burocrática em série de reportagens de Ricardo Kotscho publicada neste jornal em plena ditadura. Como nas comédias de erros (de Shakespeare aos humorísticos populares de televisão) - e que não se perca a piada pela própria designação do gênero teatral -, o mordomo Amaury de Jesus Machado atende pela alcunha de Secreta, de "secretário", mas também denominação aplicada aos atos clandestinos que permitem esse e outros tipos de abusos. Secreta recebe, na condição de motorista "noturno" do Senado (que nem sequer funciona tanto assim à luz do dia), R$ 12 mil por mês. Lembro-me de que, quando constituinte, Lula me confidenciou, em tom de espanto, que a "companheira" que servia café em seu gabinete ganhava mais que os mais qualificados metalúrgicos do ABC, seus liderados. Hoje, porém, estando em sua mão o timão do pacto dos patriarcas dos grotões com os hierarcas dos sindicatos, que governa o País, já não se espanta com o fato de o povo pobre pagar ao motorista e mordomo salários com os quais sonham em vão médicos, professores e outros servidores públicos menos votados. Por que político nenhum, dentro ou fora do Congresso, fica indignado com isso? José Nêumanne, jornalista e escritor, é editorialista do Jornal da Tarde