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A herança de Caim à espera dos cientistas

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Por Redação
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Que se vai fazer com as metrópoles brasileiras, com as grandes cidades e seus graves e complexos problemas? Que soluções vão ser concebidas e implantadas nesses espaços, onde se concentram - só nas 15 maiores regiões metropolitanas brasileiras - 71,7 milhões de pessoas, ou 37,25% da nossa população? Como levar à prática a profusão de leis - Estatuto das Cidades, planos diretores, legislação sobre consórcios públicos, Estatuto da Metrópole, Lei da Política Nacional de Resíduos Sólidos, Lei da Política Nacional de Meio Ambiente, legislação sobre s saúde, sobre recursos hídricos, sobre crimes ambientais, entre muitas outras? Como compatibilizá-las umas com as outras? E como pôr a ciência a serviço desses temas, formando pessoal habilitado e especializado?Foram esses os temas principais do oportuno seminário internacional sobre A Metropolização Brasileira e os Desafios da Gestão Urbana, promovido nesta semana, em Brasília, pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), do Ministério da Educação, com a presença de cientistas de todo o País e do exterior.Não pode haver discussão mais necessária, num país já com mais de 80% da população em áreas urbanas (mais de 20 pessoas por quilômetro quadrado) e ainda crescendo, ao mesmo tempo que as cidades se verticalizam e ocupam mais espaços na periferia - simultaneamente. E com uma carga gigantesca de problemas, que incluem ainda a violência, a gestão de recursos naturais, a exclusão social e a governança metropolitana (perdida no meio de políticas e ações descoordenadas entre governantes nos vários níveis).Enquanto isso, como afirmou há décadas um pensador basco, "a cidade começa por nos roubar o essencial - a visão da nossa própria sombra e os ruídos dos nossos próprios passos". E por isso, no dizer do geógrafo francês Yves Lacoste, se o século 19 nos ensinou a ler as palavras, agora precisamos aprender a ler o espaço. Para escapar ao dilema apontado por tantos pensadores: o Estado tornou-se grande demais para conseguir se aproximar dos pequenos problemas do cotidiano do cidadão e pequeno demais para resolver os problemas das metrópoles.Muito trabalho espera pelos cientistas ao enfrentarem a questão urbana, nossa "herança de Caim", o criador da primeira cidade, na expressão do arquiteto português Jorge Gaspar, um dos expositores do seminário. Precisarão de muita capacidade para estudar as relações de espaço e tempo, integrar discussões materiais, sociais e ambientais, dimensões culturais, econômicas e políticas, analisar formatos de intervenção, reconhecer movimentos e tendências internacionais - mas atentos às particularidades -, valorizar o acervo de informações já disponíveis (principalmente no IBGE), distinguir processos e formas de produção e apropriação de espaços, caminhos estatais e sociais nas políticas públicas urbanas. Trabalhar mais as questões do clima, da acessibilidade, da mobilidade. Deter-se na formulação da governança metropolitana. Muito esforço. Muita complexidade.Nesses caminhos, uma infinidade de questões se coloca. Que se fará com a questão das favelas? Só o Rio de Janeiro tem 2.627, com 25% da população (entre 3 milhões e 4 milhões), São Paulo também tem milhões em áreas inadequadas, de risco, de proteção ambiental. Que se fará para proteger um terço das populações urbanas que se desloca a pé e não tem espaços adequados e de proteção? Como chegar a ter planos diretores metropolitanos que conjuguem e sincronizem as macroações e, ao mesmo, permitam descentralizar a gestão em subprefeituras que tenham orçamentos específicos, votados e fiscalizados pela sociedade?Até onde se pretende ir com uma frota urbana de veículos que já tem 37 milhões em circulação e se pretende que chegue a 70 milhões no fim desta década, ainda mais concedendo incentivos ficais? Quando vão ser contabilizados, internalizados e cobrados de quem os gera os custos ambientais e de saúde da poluição urbana? Não é admissível continuar com cerca de metade dos domicílios urbanos - mesmo nas áreas metropolitanas - sem conexão com as redes de esgotos, com 70% dos esgotos coletados sem receber tratamento e despejados nos cursos d'água, onde são a principal fonte de poluição. Mais de 40% do lixo coletado não vai para aterros adequados ou para a reciclagem, que é mínima (Estado, 8/5); 40% dos municípios não dão destino adequado a mais de 74 mil toneladas por dia, enquanto 6,4 milhões em um ano nem sequer são coletadas. Cada pessoa gera, hoje, 1,2 quilo de lixo por dia.A obsolescência física das estruturas urbanas é cada vez mais evidente e preocupa os especialistas. E o despreparo para enfrentar eventos climáticos extremos é grave. Pelo menos 5 milhões de pessoas vivem em áreas de risco.A questão da governança não poderá deixar de lado a necessidade de integrar milhões de pessoas ainda abaixo da linha de pobreza. Ao mesmo tempo, entretanto, terá de olhar de frente para a temível questão que começa a ocupar o centro dos debates em toda parte: como fazer isso - lembrando ainda que mais 2 bilhões de pessoas virão ao mundo nas próximas décadas - sem agravar a chamada crise dos recursos naturais, o consumo de materiais acima das possibilidade de reposição do planeta? A maior parte desse acréscimo populacional ocorrerá nos países mais pobres; e, no Brasil, nos segmentos sociais de menor renda.Como se escreveu aqui no artigo anterior (Os dramas de agora, as ameaças de 2050, de 4/5), a cada cinco dias mais 1 milhão de pessoas se agrega às áreas urbanas no mundo, mais de 70 milhões em um ano. E tudo se correlaciona no planeta - a ponto de, como salientou o professor Jorge Gaspar - os asiáticos dizerem hoje que "a Europa é uma península da Ásia".Há muito trabalho à espera dos cientistas nas cidades, como enfatizou no seminário o professor Arlindo Philippi Jr., da Universidade de São Paulo. Suas ideias e soluções serão muito bem-vindas.* JORNALISTAE-MAIL: WLRNOVAES@UOL.COM.BR