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A Justiça a Serviço do Crime

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Por Almir Pazzianotto Pinto
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Dácio Aranha de Arruda Campos foi um dos juízes paulistas cassados pelo Alto Comando Revolucionário, em abril de 1964. Acompanharam-no, como vítimas do arbítrio, o juiz José Francisco Ferreira, titular da Comarca de Pacaembu, e o desembargador Edgard de Moura Bittencourt - anos depois homenageados pelo Tribunal de Justiça. Escritor e jornalista, Arruda Campos integrava o corpo editorial do jornal O Estado de S. Paulo e escrevia crônicas sob o pseudônimo de Matias Arrudão. A ele devemos o magistral livro A Justiça a Serviço do Crime, cuja primeira edição foi tirada em 1959. Ao completar meio século, a obra continua forte, ousada e polêmica, como veículo de ataque ao direito criminal, ao formalismo processual, à perversão do sistema carcerário. Já na página de abertura Arruda Campos faz profissão de fé democrática, ao escrever que "fora da democracia não há salvação. Essa verdade precisa ser dita e redita, sobretudo nos momentos de crise política, para que ninguém se iluda diante dos que pregam a confusão". É notável que tal declaração tenha partido de quem era considerado comunista e admirador de regime cuja essência consiste na negação do indivíduo e no estrangulamento das liberdades democráticas. O saudoso magistrado reafirmou a ilimitada crença na democracia ao sustentar, em nota de rodapé da quarta edição, que "no curso dos últimos 20 anos, desde a primeira edição, as ideias expostas neste estudo desenvolveram em mim, mais do que nunca, a convicção de que o maior e o mais urgente dos males consiste no alheamento do eleitorado em relação ao Judiciário". Adversário da ritualística cujo apostolado venera as filigranas do processo e abomina o direito material, Arruda Campos não vacilou ao denunciar que "ridículos são certos juristas, quando comparados aos que se dedicam às ciências positivas. Porque aludem à lei da sucessão hereditária e às invenções de Carnelutti e Chiovenda com a mesma convicção com que o físico se reporta à lei da gravidade e às teorias de Newton". Arruda Campos referiu-se à Carta política de 1946 como "a grande e ingênua ficção brasileira". Para justificar tal pensamento, escreveu: "Nas épocas que precedem os pleitos percebem-se com inteira nitidez as manobras das cúpulas dos grupos dominantes. Não são os partidos que agem, mas os representantes das correntes financeiras que se movimentam. O povo assiste ao desenvolvimento da partida, sem ser chamado a interferir. Sabe que seu destino está sendo jogado, mas não tem o direito de fazer qualquer lance. Os próceres políticos - acreditados por tudo, menos pelo eleitorado - fazem ajustes, combinações e barganhas. Aliam-se e traem-se mutuamente. Fórmulas são imaginadas, chapas são estudadas, planos são estabelecidos. Por fim, aceitam os partidos as imposições que lhes são feitas, fazem as convenções e homologam as escolhas. Sagradas as candidaturas pelo registro na Justiça Eleitoral, o povo é convidado, não a decidir, senão a optar." Mais adiante, indagou Arruda Campos: "Como impedir o negocismo, a negociata, se aos altos postos de comando são guindados ?criminosos de colarinho branco??." O capítulo 2 traz intrigante subtítulo: A lei gera o crime. Com sobras de argumentos ataca a fórmula de Cesare Bonesana, Marquês de Beccaria, segundo a qual inexiste crime sem lei anterior que o defina. Para Arruda Campos, "é evidente, em certos casos, que o crime antecede a lei (...). Na generalidade dos casos, porém, é a lei que gera o crime, porque ela segue o direito posto ao serviço da definição dos delitos (...) Tudo depende do ponto de vista predominante do grupo que empolga a superestrutura da sociedade". O valoroso magistrado não poupou sequer os ilustres pares. Ao descrever como a Justiça aplica a lei, explicou que o interesse social é um só e consiste na esperança de que, após o cumprimento da pena, "o delinquente retorne curado, para que cuide corretamente das suas obrigações, como a generalidade dos cidadãos". Não era, todavia, o que se registrava e, diante do malogro do regime prisional, aponta: "À Justiça brasileira não interessa o homem, já ficou dito. À Justiça não interessa a justiça, já ficou assinalado. Então - pode-se perguntar - que afinal, lhe interessa? À Justiça, do modo por que funciona, interessa tão somente o aspecto formal dos casos que lhe são submetidos a julgamento. Cultiva a exterioridade, não a essência. Assim, sendo o réu um nome, não uma pessoa que vive, palpita, anseia e chora, pouco se lhe importa que seu procedimento seja justo." E continua: "Justiça tarda não é justiça. Justiça que passa da pessoa do delinquente é injustiça. A Justiça, para que mereça esse nome, malgrado a necessária redundância, deve ser uma justiça justa." Teria o célebre livro incorrido em exageros nas acusações que faz ao Judiciário? Talvez. Não devemos ignorar, todavia, que muito do que nele assinalou enodoa até hoje a imagem daquele que deveria ser, entre os Poderes da União, padrão de equilíbrio, isenção e austeridade. Transcorridos 50 anos são atuais as palavras de Ruy Barbosa, que em dezembro de 1914 pregou: "A falta de Justiça é o grande mal de nossa terra, o mal dos males, a origem de todas as nossas infelicidades, a fonte de todo o nosso descrédito, é a miséria suprema desta pobre nação." Arruda Campos pagou com a perda dos direitos políticos a publicação da obra. Cabe, agora, ao mundo do Direito, evitar que passe em branco o 50.º aniversário da primeira edição, fonte de inspiração para aqueles que acreditam na Justiça. Almir Pazzianotto Pinto, advogado, foi ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho