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A linha que Obama cruza

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Por Redação
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Numa escala em Estocolmo, a caminho da reunião do G-20 em São Petersburgo, o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, tornou a defender a retaliação militar à Síria pelo ataque com gás sarin, atribuído à ditadura de Bashar al-Assad, contra civis em áreas controladas pelos rebeldes nas cercanias de Damasco, em 21 de agosto. Os peritos da ONU ainda não apresentaram o seu relatório sobre o ato de barbárie que, segundo o Departamento de Estado americano, matou 1.429 pessoas, entre elas 426 crianças. A Casa Branca diz ter provas irrefutáveis da autoria do crime. A França afirma o mesmo. Nem Washington nem Paris as apresentaram até agora.Aceite-se, em todo caso, a premissa de que só o regime afrontado por uma insurgência que dura dois anos e meio dispõe de armas químicas e dos meios para lançá-las - o que já teria feito em várias situações, em pequena escala. De outra parte, as atrocidades cometidas pelas forças inimigas de Assad, entre as quais facções terroristas afiliadas à Al-Qaeda, não deixam dúvida de que, podendo, também o fariam. A comprovação de que os "mocinhos" se assemelham aos "bandidos" elimina a expectativa inicial dos governos ocidentais de que, derrotado Assad, a Síria engatinharia em direção a alguma forma de democracia.Muito mais provável será o caos, o desmanche do país e o recomeço da guerra civil no vizinho Líbano, com óbvios efeitos para a sempre precária estabilidade das demais nações árabes da região. Em Estocolmo, Obama argumentou que a linha vermelha cruzada por Damasco não foi aquela que ele invocou em agosto de 2012, numa advertência de improviso, mas a da convenção global contra armas químicas de 1993. Ela foi assinada, lembrou o presidente, por governos "que representam 98% da humanidade" - menos os da Síria, Angola, Coreia do Norte, Egito e Sudão do Sul. Israel e Mianmar ainda não ratificaram o texto. Logo, segue o raciocínio, a transgressão não pode ficar impune, sob pena de ser imitada e de forma ainda pior pelo Irã, por exemplo, com um teste nuclear. Não custa lembrar, a propósito, a complacência dos EUA com o ingresso da Índia e do Paquistão no clube atômico. Assim como Israel, eles não assinaram o Tratado de Não Proliferação. De fato, países não podem ser castigados por descumprir obrigações que não assumiram, o que é agora o caso da Síria. Para Obama, que aderiu um tanto tardiamente à pregação punitiva do britânico David Cameron - este afinal desautorizado pelo Parlamento - e do francês François Hollande, a pena não apenas é cabível, mas tem de ser de natureza militar, para "deter e degradar" a capacidade de Assad de reincidir no uso de gases letais. O incontornável problema é que apenas o Conselho de Segurança (CS) da ONU tem legitimidade para autorizar o uso de força contra um país, mesmo em nome da "responsabilidade de proteger" assumida pela ONU em 1995. A imposição do bloqueio do espaço aéreo líbio, em 2011, para impedir os ataques a civis ordenados pelo ditador Muamar Kadafi, obedeceu a esse princípio. Ao agir como se o CS não contasse, Obama cruza outra linha, aproximando-se de George W. Bush ao invadir o Iraque em 2003. Sabe-se por que: a Rússia, aliada de Assad, recorreria ao poder de veto de que desfruta como membro permanente do colegiado, impedindo uma ação armada contra Damasco. Mas estas são as regras do jogo desde a criação da ONU. Washington não se cansou de vetar resoluções condenando Israel, entre outras coisas, pela colonização dos territórios palestinos ocupados. Durante a guerra fria, o ministro do Exterior da então União Soviética, Andrei Gromiko, era chamado Mr. Nyet (Sr. Não), pela frequência com que mandava bloquear decisões do CS - e o mundo não acabou por isso. Ao ignorar a instância da ONU, Obama - agraciado com o Nobel da Paz - prefere a lei do mais forte à força do direito. E tudo o que se discute esses dias em Washington é se o Congresso dará o respaldo pedido à intervenção. A ironia final é que Obama parece dizer a Assad: matar com armas químicas não pode; com armas convencionais, sim.