Imagem ex-librisOpinião do Estadão

A modernização da gestão pública

Exclusivo para assinantes
Por Claudia Costin
3 min de leitura

Faleceu, no último dia 17 de julho, no triste e inaceitável acidente do Airbus 3054 da TAM, Guilherme Duque Estrada, membro da equipe do ex-ministro Hélio Beltrão, coordenador e entusiasta da desburocratização e da modernização das estruturas e práticas da administração pública. Tive a oportunidade de conhecê-lo, na tentativa de recriar um movimento pela redução dos entraves à boa gestão pública e da papelada que inferniza a vida de cidadãos e empresas. Juntamente com Piquet Carneiro, também parte do esforço empreendido nos anos 1970, Guilherme ajudara a criar o Instituto Hélio Beltrão, contraparte da sociedade civil ao programa que se tentou ressuscitar no final dos anos 1990. Foi-se o Hélio e se foi agora, vítima da desconexão de órgãos governamentais na administração da aviação civil, um arauto da sua simplificação. O Estado brasileiro vive ainda, neste início do século 21, uma forte crise em seu modelo de gestão. Parte dela resulta da concepção que temos de Estado. Ainda o vemos como mero gerador de emprego e renda, intimamente vinculado ao sistema clientelista, e a principal demanda que lhe colocamos é a moralização de suas práticas. Acredita-se que, impondo-se-lhe regras cada vez mais detalhadas e de difícil monitoramento, se pode garantir ética em sua forma de atuação. Nada mais ilusório, como mostram episódios recentes. Não é o número de regras e controles burocráticos que vai assegurar a lisura nos procedimentos. Ao contrário, quando o processo é artificialmente complicado, alguém se lembra de vender uma via rápida. Além disso, a regra não aprisiona a cultura. Se tivermos valores associados à obtenção de caminhos exclusivos, privilégios inaceitáveis para os outros, mas defensáveis no caso particular, e os praticamos em todos os domínios da vida, não será um conjunto intrincado de normas que irá, sozinho, evitar o mau uso de recursos públicos. Mas o problema não reside apenas na mera existência deste aparato normativo que engessa a gestão pública. Encontra-se no substrato que lhe dá origem, ou seja, na visão de que o Estado não precisa prestar serviços públicos à população ou exercer com competência e sem transtornos suas funções de regulação, garantia de direitos e formulação de políticas públicas. Se o Estado apenas emprega, não é importante ser eficiente, bastaria ser ético. Mas se sua função envolve fornecer educação básica de qualidade para todas as crianças e jovens, promover a saúde da população e tratar-lhe as doenças com investimentos em saneamento básico, vacinações, uma rede de centros de saúde, ambulatórios e hospitais com bons médicos e enfermeiros, capacitados e equipados, assegurar caminhos para o desenvolvimento científico, tecnológico e industrial do País, isso não basta. É necessário dotar o Estado de instrumentos de gestão modernos e ágeis, consistentes com os recentes avanços da tecnologia da informação e de mecanismos modernos de organização, prestação de contas, responsabilização e transparência. Nesse sentido, foram criadas em 1998 as organizações sociais. Diante do enrijecimento adicional da gestão estabelecido pela Constituição de 1988, que acabou com boa parte do esforço modernizador e desburocratizador empreendido por Hélio Beltrão, hospitais, museus e centros de pesquisa saíram da condição de centros de excelência para lutarem cotidianamente contra regras tecnocráticas que lhes impossibilitavam um funcionamento adequado de suas atividades. Em nome do combate a excessos eventualmente cometidos por algumas fundações, numa cultura de não-responsabilização e de voracidade legiferante, passamos a tratar todas as atividades do Estado como se fossem de uma única natureza. Todas sujeitas às mesmas normas a que submetemos o exercício do poder de polícia. Faz sentido pensar em submeter orquestras, museus e hospitais a regras iguais às que regem a Receita Federal? Licitação para aquisição de obras de arte? As organizações sociais surgiram para garantir uma parceria entre a sociedade civil e o Estado, em que associações de usuários e outras entidades sem fins lucrativos pudessem, sem estar submetidas a regras estranhas a sua lógica, gerenciar com qualidade serviços públicos prestados à população. Foi, portanto, com entusiasmo que saudei o anúncio do governo federal da intenção de reintroduzir as fundações de direito privado, presentes no modelo do Decreto-Lei nº 200, também capitaneado por Hélio Beltrão. O aparelho de Estado deve contar com uma administração direta forte e competente para formular políticas públicas e coordenar-lhes a implementação, deve ter agências reguladoras e de fiscalização competentes e ágeis para o desempenho de suas funções, ambas profissionalizadas, com servidores de carreira de bom nível e bem remunerados. Mas a implementação de políticas em atividades culturais, de pesquisa e de atendimento à saúde pode funcionar muito melhor dando-lhes mais autonomia e estabelecendo uma legislação mais adequada à criatividade, requerimentos tecnológicos e possibilidades de contratação de especialistas, proporcionada pelas fundações de direito privado (submetidas, é bom lembrar, ao Ministério Público e aos Tribunais de Contas), ou por meio de parcerias com organizações sociais com as quais se assinam contratos de gestão. Guilherme Duque Estrada certamente ficou contente ao ter recebido a notícia, pouco antes de desaparecer, para levar seu entusiasmo por um Brasil diferente a outras esferas.