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Opinião|A pergunta trágica de Vargas Llosa e nós

Atualização:

Não foi em agosto, outubro acaba de se despedir. Quando será que vai surgir uma luz no fim desse túnel escuro em que tateamos às cegas? Está bem, todos concordam, as instituições têm revelado uma insuspeitada resiliência. Mas até quando serão capazes de manter em equilíbrio antagonismos ferozes que se manifestam sem freios, agravados pelas revelações, trazidas pelos operadores da Lava Jato, dessa miserável trama em que fomos enredados, em que a política virou lugar do salve-se quem puder?

Em Natais passados, circunstâncias assemelhadas a essas contavam com um rico arsenal de categorias que nos advertiam para os riscos do cesarismo e do bonapartismo em sociedades incapazes, pela natureza incontornável dos seus conflitos, de assegurar uma ordem política previsível e confiável e que, assim, passam a reclamar dos quartéis uma solução salvadora. Eles não deixaram saudades. Livre desses riscos, por que o mundo mudou e nós mudamos com ele, a imaginação recorre agora a fontes mais prosaicas e benignas de salvação, como entre os que depositam suas esperanças nas ações dos tribunais.

Nesse trajeto dos quartéis aos tribunais, tomada a devida distância quanto à ingenuidade, quase patética, das expectativas repousadas atualmente nestes últimos, um longo e virtuoso caminho foi empreendido pela sociedade, embora ela ainda esteja bem longe de uma compreensão refletida da sua nova situação. As grandes transformações por que ela passou nas últimas décadas – econômicas, demográficas, ocupacionais e no seu modo de inscrição no mundo – testemunharam a imposição no País do modo de produção especificamente capitalista, exemplar na mutação experimentada pela questão agrária, tradicional calcanhar de Aquiles entre nós para uma estabilização da ordem burguesa, processo que se realizou sob um plano de estado-maior do regime militar que abriu caminho para o êxito do agronegócio.

Adeus às presumidas vantagens do atraso como alavanca para a mudança social. Sob o impacto dessas mudanças, a sociedade, na medida em que reagia ao autoritarismo político e ao regime de exceção que lhe era imposto pelo regime militar, foi concebendo por ensaio e erro um novo repertório para orientar suas ações a fim de reconquistar liberdades civis e públicas. Aos poucos, e não sem tropeços, a agenda andou: as vantagens em favor da mudança passaram a ser percebidas na chave dos temas do moderno. O foco do conjunto de forças que se aplicava na resistência ao autoritarismo político concentrou-se no esforço de valorização da sociedade civil.

A esfera pública se adensou com a presença de instituições que vieram somar-se ao propósito comum de restaurar os valores do liberalismo político, como, principalmente, a Igreja Católica, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Nas eleições de 1974, com a vitória do candidato oposicionista ao Senado em São Paulo, a sociedade afinal descobre a via eleitoral como forma superior de luta na sua resistência ao regime militar; e nos massivos protestos contra o assassinato do operário Manoel Fiel Filho e do jornalista Vladimir Herzog nos porões da ditadura consolida a sua adesão à agenda da democracia política.

Um pouco à frente irrompem as manifestações do sindicalismo do ABC, na ponta moderna do parque fabril, em movimentos grevistas que, ao lado de reivindicações específicas, denunciavam a estrutura corporativa que o atava ao Estado e às razões do processo de modernização conduzido por ele. As demandas políticas da sociedade por liberdades civis e públicas e de autonomia diante do Estado passam a se confundir com a pauta da democracia social.

A partir daí, a história é conhecida e teve seu desenlace feliz com a Carta de 1988, que nos trouxe de volta ao liberalismo político, impôs limites ao discricionarismo do Poder Executivo por meio de instrumentos de accountability, entre os quais o de controle da constitucionalidade das leis, e fixou princípios e instituições afetos à questão social, abrindo canais, com a criação de novos institutos, para que a sociedade possa fazer-se presente em matéria de políticas públicas.

Vargas Llosa, em sua obra-prima Conversa na Catedral, nas primeiras páginas do romance faz com que o protagonista se pergunte sobre en qué momento el Perú se jodió, indagação que nos pode servir para que venhamos a refletir sobre as razões por que, aqui, com um enredo tão propício no ponto de partida – que não era bem o caso no país natal do nosso autor –, nos tenhamos perdido, em tão pouco tempo, neste labirinto de horrores a que nosso cotidiano foi condenado.

Decerto nem tudo está perdido, ainda há tempo para recuperarmos o fio da meada que nos escapou das mãos quando operações desastradas levadas a cabo, por erros de interpretação do PT sobre a situação do País, dissociaram os nexos fecundos que descobrimos, no curso das lutas contra o regime militar, entre a democracia política e a social. Nada na natureza das coisas obrigava ao abandono da via de aprofundamento da democracia política como estratégia para a mudança social – foi uma livre e equívoca opção do ator.

Como alternativa a esse caminho, o PT, antes um sistemático antagonista da chamada tradição republicana brasileira, denunciada – nem sempre justamente – como força de sustentação do atraso, se alia acriticamente a ela e se deixa contaminar por suas tradições patrimonialistas. Pior, adere às suas práticas decisionistas dos tempos áureos da modernização – a mudança social seria obra do Estado sob sua hegemonia a exigir um tempo de longa duração e a sua permanência no poder.

Daí para o mensalão e o petrolão bastou um pulo, que nos arrebatou das mãos o fio da meada que nos mantinha vinculados ao enredo feliz que, em tempos idos, criamos para nós e, agora, cumpre retomar.

* LUIZ WERNECK VIANNA É SOCIÓLOGO (PUC-RIO)