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Opinião|A política externa e a crise política

A defesa do interesse nacional exige a continuidade da agenda do Itamaraty

Atualização:

Apesar de a crise política ter sido agravada por denúncia contra o próprio presidente da República, foi significativa a decisão do PSDB, do PMDB, do DEM e de outros partidos de separá-la da discussão no Congresso das reformas estruturais (trabalhista, previdenciária, tributária e política). A contaminação pela radicalização política do exame e da sua eventual aprovação seria danosa para o Brasil. Fizeram bem as lideranças desses partidos em pôr os interesses do País acima das disputas político-partidárias, pois, caso as reformas não sejam votadas, estarão em jogo a estabilidade da economia, a volta do crescimento e a redução do desemprego.

Não há dúvida de que a crise política e o temor de denúncias da Lava Jato têm afetado o funcionamento normal da administração pública. Apesar disso, nos primeiros 13 meses do atual governo o apoio institucional e a nova orientação imprimida por José Serra e agora por Aloysio Nunes Ferreira revitalizaram o Itamaraty, fortalecendo seu papel central na formulação e execução da política externa, e retiraram o Brasil do isolamento das negociações comerciais. Os recursos recebidos permitiram que o País voltasse a honrar seus compromissos financeiros nos organismos internacionais e facilitaram um planejamento mais adequado dos gastos com a manutenção da máquina administrativa no Brasil e no exterior.

As correções de rumo na política externa afastaram a influência ideológica que pôs o Brasil a reboque dos acontecimentos, sobretudo na América do Sul, e recuperaram o tempo perdido nas negociações comerciais externas com a aceleração das negociações Mercosul-União Europeia e a abertura de conversas exploratórias com o Canadá, o Japão e a Coreia do Sul. O Itamaraty retomou, em larga medida, sua capacidade de iniciativa e voltou a defender os interesses permanentes do País, ao contrário do que passara a ser feito no segundo mandato do governo Lula e nos tempos de Dilma Rousseff. As relações com a Argentina foram relançadas, permitindo uma reavaliação do Mercosul e a tomada de medidas para fazê-lo retornar às suas origens como instrumento para abertura de mercados e liberalização de comércio. Os entendimentos com os EUA avançam, de forma pragmática, no que é possível e nossas fronteiras passaram a ter uma atenção especial para controlar o contrabando de drogas e de armas. A Venezuela passou a ser um dos itens principais da agenda diplomática, pelas violações à democracia, ao desrespeito dos direitos humanos e pela ameaça de crescente número de refugiados em nosso país. E a dura nota do Itamaraty contra o comunicado conjunto emitida pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos e pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que tratou de maneira distorcida e tendenciosa a reação do governo aos lamentáveis acontecimentos em Brasília no dia 24 de maio, com a destruição e o incêndio de prédios públicos, e de maneira capciosa menciona a violência agrária no sul do Pará e as medidas da Prefeitura de São Paulo contra o consumo e o tráfico de drogas.

É lamentável que a Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE), ignorando a rapidez dos ajustes de rumo da política externa visando a defender os interesses permanentes do Brasil em tão curto espaço de tempo, faça crítica desfocada à diplomacia brasileira e ao Itamaraty. Ao traçar um quadro de falta de visão estratégica do Brasil, de improvisação da política externa e de ações apenas reativas, a SAE defende uma grande estratégia, que nem ela própria sabe qual é.

Qualquer que seja o futuro do presidente Michel Temer, a defesa do interesse nacional exige que não haja descontinuidade na agenda da atual política externa, que busca retomar sua voz independente e voltar a projetar suas prioridades, em especial:

- a conclusão do acordo de livre-comércio entre o Mercosul e a União Europeia;

- a negociação para o ingresso na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), depois do pedido de adesão;

- a presença do Brasil nos esforços da comunidade internacional para conter os excessos do governo Maduro, na Venezuela, e permitir um avanço negociado para evitar um conflito de grande escala;

- a proposta de início das negociações com os Estados Unidos para um acordo de salvaguarda tecnológica que torne viável o aproveitamento comercial da Base de Alcântara;

- assumir a efetiva liderança na América do Sul, com propostas concretas de maior integração, sobretudo na área de infraestrutura física;

- ampliar as medidas para a segurança das fronteiras com a cooperação dos países vizinhos para combater a criminalidade no Brasil;

- reforço da presença do Brasil na África, com a visita do ministro de Relações Exteriores a seis países, como estão fazendo o Japão, a Índia, a Turquia, sem falar na China;

- aprofundar o relacionamento com o Brics e com o Novo Banco de Desenvolvimento;

- reforçar a Apex, agora no Itamaraty, e a promoção comercial;

- implantar até o fim do ano o visto eletrônico para EUA, Canadá, Japão e Austrália, para estimular o turismo.

Toda essa agenda proativa, porém, poderá tornar-se inviável se for mantido o atual contingenciamento de 43% do orçamento do Itamaraty. Sem um significativo descontingenciamento, o Itamaraty poderá deixar de cumprir seus compromissos e de pagar suas contas a partir de agosto/setembro. Voltaríamos ao tempo de Dilma Rousseff, de completa paralisação da máquina diplomática, calote nos postos e ameaças de cobrança judicial.

O governo federal terá de examinar pragmaticamente a situação financeira do Itamaraty para evitar que seja perdido o esforço feito agora para aumentar a projeção externa do País, elevar seu perfil e a influência regional e se reinserir plenamente nos fluxos dinâmicos da economia e do comércio internacional.

*Presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (Irice)