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A praça se impõe em Kiev

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Por Redação
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A manifestação de domingo pela renúncia do presidente ucraniano, Viktor Yanukovich, reuniu 50 mil pessoas na Maidan, no centro de Kiev, que a oposição já rebatizou de Euromaidan e Praça Independência. Não foi o maior evento da série que começou em novembro, quando o governo, sob pressão da Rússia, cancelou a negociação de um acordo comercial com a União Europeia, visto como o primeiro passo de uma jornada que poderia culminar com o ingresso da Ucrânia no bloco de 28 nações. Os protestos mais concorridos foram os do início de dezembro, com 100 mil participantes em média.Mas a comparação pode ser enganadora. A relação de forças no país mudou acentuadamente desde então. Yanukovich, que reassumiu ontem depois de uma breve licença por alegados motivos de saúde, está na defensiva. A violenta resposta ao movimento por ele ordenada, que deixou 5 mortos e 20 desaparecidos, produziu o proverbial efeito bumerangue. De pouco adiantou a revogação de uma draconiana lei repressiva aprovada pelo Parlamento de maioria governista. A renúncia, na semana passada, do irrelevante primeiro-ministro Nikolai Azarov foi outra concessão recebida com indiferença. Assim também a anistia aos detidos, condicionada à desocupação dos prédios públicos.O que causou impacto, isso sim - e para elevar o clamor pela saída do presidente -, foi o reaparecimento do manifestante Dmytro Bulatov, sequestrado pelos serviços de segurança. Com parte do rosto reduzido a uma polpa, ele contou ter sido torturado por militantes pró-Yanukovich, que chegaram a crucificá-lo numa porta. No domingo, a manchete da edição online do jornal Ukrainska Pravda constatava: Viktor Yanukovich: entre a guerra e a derrota. Até o noticiário dando como altamente provável a decretação do estado de emergência que autorizaria a mobilização do Exército para liquidar a rebelião tornou-se mais cuidadoso.Registram-se rumores de que oficiais têm sido assediados para expressar por escrito a sua lealdade ao governo, sob pena de serem destituídos. Se forem verdadeiros, traduziriam a incerteza do círculo de Yanukovich - a "Família" - sobre a disposição do oficialato de investir contra os civis. De seu lado, ao voltar de Munique, onde receberam o apoio do secretário de Estado americano, John Kerry, e do seu colega francês, Laurent Fabius, os líderes oposicionistas disseram na Praça Independência que só fariam um acordo com Yanukovich se assumirem o controle do Ministério do Interior, que comanda a Berkut, a afamada tropa de choque ucraniana.Mas a Ucrânia não é apenas Kiev, nem mesmo o oeste onde se situa. No leste e no sul, onde a população é russófona, o Partido Comunista ainda tem seguidores e a indústria, voltada para o mercado russo, temia ser esmagada pela concorrência europeia se fosse adiante o acordo que Yanukovich fez abortar, o apoio ao governo é inequívoco. Mesmo depois de o presidente Vladimir Putin, agastado com o seu colega por não acabar de vez com a oposição, suspender a ajuda de US$ 15 bilhões para tirar a Ucrânia do sufoco. Ela tinha sido prometida em troca do fim das conversações com a União Europeia. Outro fator que relaciona os protestos em Kiev às divisões no país é especialmente inquietante.Assim como a Al-Qaeda desfigura a face democrática da rebelião síria, a presença da extrema direita nacionalista no movimento contra Yanukovich põe em evidência o que há de pior no cenário ucraniano. O que a move não são aspirações europeístas, muito menos o credo liberal. O líder do partido Svoboda, Oleh Tyahnybok, por exemplo, quer acabar com a "máfia judaico-moscovita" que controlaria o país. O Svoboda promoveu recentemente em Lviv uma marcha de 15 mil pessoas carregando tochas, em memória do líder fascista Stepan Bandera. Durante a guerra, as suas forças rivalizavam com os ocupantes alemães em massacres de judeus e prisioneiros soviéticos.Mascarados e carregando bastões, os nacionalistas patrulham a praça e provocam os policiais. Os outros se conformam. "Não julgo as pessoas que vêm aqui lutar", resume um manifestante.