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A preamar dos mascarados

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Por GAUDÊNCIO TORQUATO
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A democracia é o governo do poder visível. Sob sua tutela "nada pode permanecer confinado no espaço do mistério", ensina Norberto Bobbio. A lição é oportuna na quadra em que vive o País, caracterizada por mobilização de grupos e setores, entre os quais o contingente que se autointitula Black Bloc, formado por pessoas que atuam de forma brutal, construindo barricadas, depredando lojas e monumentos, enfrentando a polícia, em aparente demonstração de que a revolta tem como foco o Estado e os símbolos clássicos do capital, a partir da concentração de riquezas e das instituições que encarnam tal representação, como bancos.A crescente onda de violência puxada por esse grupamento, além do evidente refluxo que produz no apoio aos eventos de rua que há dois meses agitam a vida nacional, deixa transparecer uma crise de autoridade. O Estado não tem demonstrado competência para fazer cumprir a lei, seja por leniência, fechando os olhos para o vandalismo, seja por receio de que a força policial puxe para baixo a imagem já negativa de seus governantes, ou ainda por falta de qualificação do aparelho policial para lidar com uma nova ordem social. O fato é que o descontrole fica patente, ensejando, a cada nova manifestação, atos cada vez mais virulentos. Imagine-se o efeito bola de neve se a criminalidade crescente não receber um basta.A par das motivações que estão por trás de suas ações diretas e truculentas, é inegável que os Black Blocs afrontam a lei e rompem a textura do Estado de Direito. Pode-se até argumentar que não seriam meros vândalos e baderneiros ao inseri-los no ciclo de protestos do final dos anos 90, quando o grupo ganhou visibilidade nas manifestações contra a Organização Mundial do Comércio, a batalha de Seattle (1999), e contra o G-8, em Gênova (2001), quando morreu o primeiro ativista do movimento antiglobalização, Carlo Giuliani.Na moldura brasileira, porém, a indignação do grupo não tem como lastro um episódio de envergadura nem o pano de fundo de profunda crise econômica, como a que abalou nações em 2008. O movimento Occupy Wall Street, lembre-se, tinha como foco protestos contra a desigualdade econômica, a influência de empresas e bancos no governo americano, sob a tessitura da crise internacional. A situação deflagrou movimentos congêneres nos países assolados pela mesma borrasca financeira. Por aqui, o conceito dos Black Blocs entra mais na esfera da barbárie, convergindo para o que Elias Canetti, no clássico Massa e Poder, classifica como malta: "Um grupo de homens excitados que nada desejam com maior veemência do que ser mais; o que lhes falta de densidade real suprem por intensidade". A falta de discurso é suprida pela estética da destruição.Não se trata de proibir manifestações, mas de obedecer aos dispositivos constitucionais, principalmente o inciso IV do artigo 5.º da Carta Magna, que estabelece: "É livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato". A este se segue a regra do inciso XVI: "Todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente". Fica patente que as máscaras cobrindo as feições dos militantes lhes conferem a condição de anônimos, enquanto outros pré-requisitos da ordem são desprezados, como a atitude pacífica, o espírito desarmado, o dano ao patrimônio público e privado, o direito de ir e vir de outros.Visibilidade e transparência devem integrar o caráter público do poder do Estado, na medida em que constituem meios para distinguir o justo do injusto, o lícito do ilícito, o certo do errado, a cidadania ativa de maltas oportunistas. Se portam demandas legítimas de comunidades, se iluminam as consciências com as luzes do civismo e da ética, por que agir sob disfarce? Que coragem é essa, repartida entre pernas e braços que funcionam como aríetes de ferro e aço e rostos protegidos por lenços pretos?Tentemos entender a inclinação civilizatória pela violência. Ortega Y Gasset chegou a sinalizar a propensão das massas à subversão, fruto do que chamava de era das nivelações: "Nivelam-se as fortunas, nivela-se a cultura entre as diferentes classes sociais, nivelam-se os sexos e até os continentes". Vejam só, o filósofo espanhol fez tal peroração no final da segunda década do século passado, quando descreveu o homem-massa, com sua vida sem peso nem raiz, "deixando-se arrastar pelas correntes", sem resistir aos redemoinhos que se formam nas artes, na política ou nos usos sociais. Pois bem, apesar dos ganhos civilizatórios em quase todas as frentes a serviço da vida humana, particularmente nos campos de educação e saúde, as mais perversas formas de barbárie têm-se desenvolvido nos intestinos do Estado moderno. E pior é ver que a democracia tem fracassado na promessa de debelar o poder invisível que se incrusta em todos os quadrantes do planeta, sob a forma da quebra da lei e da ordem, das ondas da vertiginosa criminalidade, do declínio dos valores morais e cívicos, dos conflitos étnicos e religiosos, do incremento dos negócios das drogas e armas, enfim, do esvaecer dos elementos básicos da civilização.O que mudou na essência do discurso de Gasset? Piorou. Na esfera do homem-massa apenas mudou a dimensão. Antes integrado às vastas multidões que se deixavam levar ao sabor das correntes, hoje a pessoa se refugia em núcleos de referência, organizados pela cadeia de especialização que a sociedade foi impelida a buscar na esteira do progresso técnico.A foto do presente flagra a violência dos caras-pretas. Mas a legenda é a mesma que Nietzsche gritou do penhasco de Engadine, nos Alpes suíços: "Vejo subir a preamar do niilismo".GAUDÊNCIO TORQUATO, JORNALISTA, PROFESSOR TITULAR DA USP,  É CONSULTOR POLÍTICO E DE COMUNICAÇÃO. TWITTER: @GAUDTORQUATO