07 de abril de 2010 | 00h00
O atual secretário de Assuntos Estratégicos da Presidência da República e ex-secretário-geral do Itamaraty, Samuel Pinheiro Guimarães, é um homem direito, que conheço bem desde que fomos colegas de turma no Instituto Rio Branco. Seu traço principal é assumir posições frontalmente. Eu quase sempre discordo delas, mas respeito sua sinceridade. Em recente entrevista ao O Estado de S. Paulo, Samuel disse que "foi um erro assinar o Tratado de Não-Proliferação em 1997, porque o Brasil era um dos poucos que tinha em sua Constituição a obrigação de desenvolver atividades nucleares apenas para fins pacíficos. Só se justifica nossa participação no TNP na medida em que potências nucleares reduzam e eliminem arsenais. Mas é preciso observar a Constituição. E qualquer tratado em que o Brasil não esteja em igualdade de condições não corresponde ao princípio de igualdade soberana entre os Estados. O Tratado de Não-Proliferação é um tratado desigual".
Terá sido realmente um erro assinar o TNP?
Desde o início do governo Fernando Henrique Cardoso, em 1995, decidimos reavaliar nossa posição tradicional, que desde 1968 era a de não assinar esse tratado. O Brasil já se havia comprometido a não desenvolver armas nucleares tanto em artigo lapidar da Constituição de 1988 quanto em diversos pactos firmados em nível bilateral, com a Argentina, e regional, com a América Latina, e já havia aceito todas as salvaguardas da Agência Internacional de Energia Atômica (Aiea). A recusa de assinar o Tratado de Não-Proliferação nos inseria num grupo mínimo de países como a Índia, o Paquistão e Israel, que estavam desenvolvendo seus programas nucleares porque viviam em contextos de alto risco para a segurança nacional, o que felizmente não era, como não é, o caso do Brasil.
Após amplas consultas internas, o presidente Fernando Henrique tomou a decisão de assinar o tratado, tarefa que me coube na sede da Organização das Nações Unidas (ONU), em junho 1997. Essa iniciativa foi tomada por coerência, visando a influir para o reforço do tratado, inclusive no que diz respeito às obrigações das potências nucleares.
O embaixador Samuel tem razão ao afirmar que os cinco países nucleares não cumpriram a obrigação de reduzir significativamente seus estoques de armas nucleares. Não é ainda suficiente a assinatura recente de um novo tratado Start (Pacto Estratégico de Redução de Armas) entre os dois países que possuem o maior número desses artefatos: os Estados Unidos e a Rússia. Porém, é incongruente a afirmação de que, como temos o compromisso constitucional taxativo, não poderíamos ter assinado o referido tratado. Tomado ao pé da letra, esse argumento pode ser lido como: não precisamos assinar nenhum compromisso internacional se os assumimos internamente. Isso equivale a dizer que o direito internacional é supérfluo.
Mais absurda ainda é a invocação de necessidade de igualdade absoluta entre os Estados como condição preliminar para assinar um tratado. Se fosse assim, o Brasil não poderia ter assinado a Carta da ONU, o Convênio Internacional do Café ou os convênios de criação do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional - pois todos esses acordos, para citar apenas um punhado deles, contêm dispositivos dando veto a alguns poucos ou votos ponderados maiores a certos países (inclusive ao Brasil) do que a outros.
Em nova entrevista - desta feita ao jornal O Globo, em 1.º de abril corrente - o ministro afirma que "qualquer medida que venha a reduzir a autonomia do Brasil na produção do ciclo de enriquecimento é algo extremamente prejudicial". Como sabe qualquer pessoa minimamente informada sobre o assunto, a taxa de enriquecimento de urânio necessária para alimentar usinas nucleares geradoras de energia é inferior a 10%. Já para confeccionar armas nucleares, a taxa requerida é de 90%. De qual das duas hipóteses está falando Samuel Pinheiro Guimarães? O Brasil precisa ter "autonomia" para chegar à meta de 90%, ou seja, para ter a capacidade de fabricar bombas atômicas?
Ninguém no mundo se opõe ao nosso programa nuclear justamente porque é considerado como sendo de natureza pacífica, mas a ambiguidade de alguns dirigentes brasileiros sobre os seus objetivos pode ser gravíssima para os interesses nacionais.
O Brasil tem uma longa e honrosa tradição pacífica, que é um galardão diplomático de nosso país, desde o Barão do Rio Branco. Cooperar para impedir a proliferação de armas nucleares é uma tarefa condizente com essa tradição e, em minha opinião, um imperativo constitucional e moral de qualquer governo brasileiro. Por isso devemos atuar para fortalecer, sem subterfúgios, a disciplina internacional, cujo instrumento básico é o tratado de 1968.
EMBAIXADOR, FOI MINISTRO DAS RELAÇÕES EXTERIORES
Encontrou algum erro? Entre em contato