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Opinião|A quem interessa cultivar essa crise?

Atualização:

Os elementos que formam o pano de fundo da crise são tantos que impedem que analistas tenham dela uma visão correta. Assim, não há como oferecer-lhe solução – ou uma opinião segura que leve a uma solução. Essa sensação me é tão forte que se projetou num sonho. A ação se passava no planeta que dizem ser primo da Terra, o Kepler 452b. A multidão nas ruas convocada pelos meios de comunicação demonstrava que a raiz da crise seriam os partidos. O povo reclamava e os intelectuais que o orientavam baseavam-se na investigação e na campanha desencadeada por um jornal contra o predomínio do Partido Republicano, que controlava os Executivos e Legislativos no Brasil inteiro. A campanha produziu efeito e deu-se a cisão desse partido, levando à criação do Partido Democrático... em 1924.

Foi um sonho ou um pesadelo? Foi um sonho, sim, em que às vezes me via arrastado, outras vezes assistia passivamente à multidão enfurecida depredando as sedes do Partido Republicano. Foi um sonho que me ofereceu um dos raros momentos em que o espírito revolucionário impôs ação a grupos de civis, até então pacíficos. Mas... foi tudo um sonho. E acordei.

Como subproduto do sonho, assombra-me a reflexão sobre a condição do homem tentado não apenas pelo dinheiro, tal qual Fausto sem sua grandeza, como por tudo o que ele pode comprar, inclusive o aplauso das multidões iludidas. E porque despertei, e porque estamos na Terra, sou obrigado a conviver com gritos desconexos das multidões e a raivosa passividade de todos os que apenas resmungam buscando entender como foi possível corromper dessa forma extraordinária, bastardamente, a política.

Mesmo sabendo que a revolta popular era um sonho, e como tal deve ser considerada, não me será possível deixar de refletir sobre o que teria ocorrido em outro planeta e comparar com nossa realidade. Tanto o vice-presidente quanto outras figuras políticas deram demonstração cabal de que essa realidade pode aproximar-se muito daquele sonho... sobretudo porque são muitos os que se empenham dia a dia em nos lembrar que a lei não foi feita para ser violada com escárnio por aqueles cujo concurso foi necessário para fazer do espaço em que vivemos um feudo.

Ao afirmar que alguém deve assumir a tarefa de superar a crise e reunificar o País, o vice-presidente poderá ser visto como apoiando a proposta de juristas no sentido de que Dilma renuncie. E experimenta na carne o resultado de não levar às últimas consequências a realidade de que nos partidos não existe nenhuma preocupação com o País.

Olhando a crise com a maior isenção possível é preciso reconhecer que ela decorre do fato de que os partidos políticos têm o poder constitucional de ser indispensáveis para qualquer reforma que garanta uma certa estabilidade às instituições. O Congresso poderá ser chamado a discutir duas propostas, o impeachment e a renúncia. De fato, tal como estão hoje as coisas colocadas, a crise só se resolveria com o afastamento de Dilma (qualquer que seja a fórmula encontrada) desde que haja um Executivo que possa resistir àquilo que corretamente seria possível chamar de chantagem do PMDB. O que se observa a esse respeito até agora é que a renúncia é politicamente mais importante que o impeachment e os partidos não estão bem preparados, pois o afastamento da presidente apenas consagrará o poder do PMDB – um dos responsáveis diretos pela crise.

É preciso ver também que os políticos brasileiros são profissionais deles mesmos e o personalismo que comanda as relações internas nos partidos está conduzindo a que o problema seja visto em função dos interesses pessoais desta ou daquela liderança que supõe deter a preferência do eleitorado. O que impede que soluções não individualistas, não personalistas, possam ser discutidas. É essa realidade que torna difícil formular propostas que possam conduzir à superação da crise.

Voltemos, por um instante que seja, ao sonho. Por um acaso não muito claro, nas diferentes cenas do Brasil onírico, todos os principais atores da crise desapareceram – daí a satisfação popular. Quais seriam eles? Os mais evidentes são Dilma, Temer, Cunha, Renan, mais Lula correndo por fora e um ainda desconhecido do PMDB que surgiria quando necessário, para que o partido mantivesse sua posição apesar da Lava Jato. Inexistindo esses personagens, algumas condições estariam dadas para que tivéssemos alguma solução a dar à crise. Evidentemente, este é o caminho sugerido pelo sonho.

A realidade, porém, destruiu a estrada que a essa solução nos levaria e nos obriga a ter os pés no chão sem sonambulismo. Ela tem tons sombrios como se estivéssemos vendo uma tela representando o que no Renascimento se imaginou ser um dos aspectos da total realidade. O que nela se espelha é um país de 200 milhões de indivíduos perplexos, perdendo, pouco a pouco, o sentimento mais geral de solidariedade grupal e afastando como desnecessário qualquer esforço para que se reconstrua a imagem do Brasil forte e amalgamado de tal maneira que a seca do Nordeste nos aflija até os Pampas.

Como escrevi há anos, rediviva a solidariedade entre os diferentes grupos sociais, este país – e ele só – seria o que chamei de Pátria Grande sem confundi-lo com outro qualquer. Para que a ele cheguemos é preciso dizer aquilo que assustará os bem-pensantes acostumados a trocar elogios fáceis: a insistência ao estilo stalinista na propaganda de que a crítica ao PT e ao governo é uma campanha de terceiro turno poderá levar os menos informados a crer que a oposição é sempre antidemocrática, formando-se um sentimento popular contrário à crítica, qualquer que seja ela.

E a questão que se coloca é se o País, com essa estrutura partidária, está preparado para ir às urnas numa eleição geral.

*Oliveiros S. Ferreira, professor da USP e da PUC-SP, é membro do Gabinete e Oficina de Livre Pensamento Estratégico. site: www.oliveiros.com.br

Opinião por Oliveiros S. Ferreira