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A questão quilombola

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Por Redação
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Dentre as dores de cabeça que receberá de herança do governo Lula, Dilma Rousseff terá que enfrentar, provavelmente já em 2011, a questão da demarcação e titulação das terras de quilombolas. O caso, na eminência de ir a julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF), tem potencial para provocar a mesma repercussão que teve, no ano passado, o julgamento sobre a reserva indígena Raposa-Serra do Sol. A polêmica criada em torno do assunto resulta da "liberalidade" com que Lula regulamentou o preceito constitucional que trata da questão.No artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, dispôs a Carta Magna de 1988: "Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos." Era o reconhecimento de um direito. Restava regulamentar a forma pela qual esse direito seria garantido. Já em seu primeiro ano de mandato, em novembro de 2003, o presidente Lula assinou o Decreto 4.877, que estabelece, em seu artigo 2.º: "Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins deste decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de autoatribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida."E logo em seguida o parágrafo primeiro do mesmo artigo reafirma e esclarece: "Para os fins deste decreto, a caracterização dos remanescentes das comunidades dos quilombos será atestada mediante autodefinição da própria comunidade."Essa regulamentação resultou naquilo que, em recente artigo no Estado, o professor Denis Rosenfield descreveu como "ressemantização da palavra quilombo": "O quilombo já não significaria um povoado formado por escravos negros (...) mas uma identidade cultural." E essa identidade, nos termos do Decreto 4.877, é autoatribuída pelos próprios interessados. Assim, tanto a Fundação Cultural Palmares quanto o Incra, entidades governamentais que têm a responsabilidade de administrar a questão, passaram a "reconhecer como quilombo qualquer "identidade cultural", "étnica", doravante aplicando-se a qualquer centro cultural, por exemplo, um terreiro de umbanda ou de candomblé". Dessa forma, segundo ainda o articulista, os processos de desapropriação para efeito de redistribuição de terra a quilombolas "não conheceriam mais limites, não importando, como estabelece a Constituição, que se trate ou não de quilombos efetivamente existentes em 1988". De fato, muitas entre as mais de 3.500 comunidades reconhecidas pelos critérios do Decreto 4.887 como quilombolas não se limitam a reclamar a titulação das terras que ocupavam em outubro de 1988, mas almejam também direitos sobre propriedades alegadamente ocupadas por antepassados, hoje nas mãos de terceiros. Numa demanda judicial dessa natureza, recentemente um juiz federal de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, deu ganho de causa a pequenos agricultores sobre cujas terras quilombolas reclamavam direitos. A arguição de inconstitucionalidade do Decreto 4.887 que deverá ser julgada pelo STF foi uma iniciativa da direção do DEM, já há mais de cinco anos. Desde então já deram entrada na Suprema Corte 26 pedidos, de origem variada, para que a questão seja levada a debate público antes de ser submetida à apreciação dos ministros-juízes. A Constituição de 1988, que o presidente da Assembleia Nacional Constituinte, deputado Ulysses Guimarães, batizou de "Constituição Cidadã", foi efetivamente marcada pela preocupação de, entre outras questões fundamentais, afirmar o compromisso do País com sua diversidade etniocultural e com a preservação da memória, tanto quanto do patrimônio, dos mais distintos grupos formadores da sociedade brasileira. É coerente com essa linha o reconhecimento do direito de comunidades quilombolas à propriedade definitiva de suas terras. Mas não ao arrepio de preceitos constitucionais claramente estabelecidos. Esse é um dos desafios que, em tempos de mudança, o Brasil tem pela frente.