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Opinião|A reforma da lei de recuperação de empresas

A mudança que tem sido lembrada como a mais urgente é a relativa à chamada ‘trava bancária’

Atualização:

Empresas fortes e saudáveis beneficiam toda a coletividade. Criam postos de trabalho, tributos e riqueza, além de dinamizarem a economia. As empresas cumprem assim a sua função social, que é um importante princípio jurídico derivado da Constituição.

Em razão da função social das empresas, quando a sobrevivência delas está ameaçada por fatores externos, como as crises macroeconômicas, interessa a todos que a lei tenha mecanismos adequados de preservação da organização empresarial. Trabalhadores, consumidores, fisco, outros agentes econômicos e toda a sociedade ganham com a eficiente superação da crise econômico-financeira, quando ela assalta empresas viáveis.

No Brasil, desde 2005 contamos com uma boa lei de recuperação de empresas. Ela tem cumprido sua finalidade básica e atende ao interesse geral de manutenção das empresas que dispõem de recursos tecnológicos, materiais e humanos valiosos, mas enfrentam dificuldades superáveis. Apesar de sua reconhecida qualidade técnica, a lei, depois de transcorridos 12 anos, precisa ser alterada.

Diversas alterações são oportunas ou mesmo necessárias, como o estímulo ao financiamento da empresa em dificuldade (DIP Finance), a contagem dos prazos processuais em dias corridos, a disciplina da assembleia dos credores, o aprimoramento da recuperação extrajudicial e a recuperação dos grupos empresariais. Mas há um assunto em especial, que tem sido lembrado como o mais urgente: a denominada “trava bancária”.

A “trava bancária” consiste no tratamento específico dado a certos créditos provenientes de financiamento bancário. Quando o banco empresta dinheiro à empresa, recebendo um tipo específico de garantia (a alienação fiduciária), a lei determina que a operação não poderá ser incluída em recuperação judicial. Isto é, o crédito do banco que conta com esse tipo de garantia não pode ser reduzido nem ter o seu vencimento prorrogado, caso a empresa devedora ingresse em juízo pedindo a recuperação.

Em suma, quando o banco recebe a garantia da alienação fiduciária, seu crédito não participa da reestruturação do passivo da empresa em crise. É inteiramente preservado. Já o crédito bancário garantido por outros meios – aval do sócio, penhor, hipoteca, caução de títulos, etc. – está sujeito à recuperação judicial da empresa financiada. Este crédito associado a outras garantias, assim, pode ter o seu valor reduzido ou o vencimento aumentado, se for decidido que isso é necessário para a recuperação da empresa em crise.

Esse tratamento diferenciado segundo o tipo de garantia tem uma justificativa técnica bastante clara. Como Pontes de Miranda já havia destacado nos anos 1960, o “direito real em garantia” é categoria diversa do “direito real de garantia”. No primeiro caso o bem dado em garantia passa a ser da propriedade do banco, enquanto no segundo ele continua no patrimônio da empresa financiada. Essa diferença é muito importante, porque o banco, ao receber um direito real em garantia (alienação fiduciária), passa a titular os direitos constitucionais de proprietário sobre o bem que garante o pagamento do empréstimo, o que não se verifica no caso do direito real de garantia (penhora).

Quando, em 2005, a lei de recuperação judicial criou a “trava bancária”, a expectativa era de que os bancos continuassem a oferecer variadas linhas de crédito, cobrando juros diferentes conforme a garantia. Se o empresário quisesse pagar menos juros, deveria conceder garantias mais fortes (alienação fiduciária); se não as tivesse, ou quisesse preservá-las, pagaria juros maiores, concedendo garantias menos fortes (penhor, hipoteca, etc.).

Mas, o que aconteceu? Aos poucos os bancos restringiram bastante a oferta de linhas de financiamento e hoje praticamente só emprestam dinheiro às empresas mediante a alienação fiduciária. Já há alguns anos, assim, quando uma empresa pede a recuperação judicial, as dívidas dela com os bancos estão, em grande parte, excluídas da reestruturação do passivo.

Nesse processo de restrição do financiamento bancário, os bancos, na verdade, passaram a exigir que a garantia recaísse sobre o faturamento futuro da financiada, caso em que é chamada de “cessão fiduciária de recebíveis”. O crédito assim garantido está igualmente fora do alcance da repactuação demandada pela recuperação da empresa devedora.

A rigor, o próprio instituto da recuperação judicial corre risco de desmoralização se a lei não adotar alguma medida visando a alterar esse quadro. Alterações devem ser feitas para estimular as instituições financeiras a voltar a oferecer outras linhas de financiamento, com diferentes tipos de garantias, bem como desestimular as empresas de transferir para os bancos a totalidade dos recebíveis. Eles representam um dos mais valiosos recursos de que necessitarão para se recuperar, se forem surpreendidas por uma crise.

Aliás, um importante passo nessa direção pode ser apontado na recente Lei n.º 13.746/17, que cria o registro central de garantias sobre ativos financeiros. Ele poderá, no futuro, fornecer dados que auxiliem no controle e prevenção do superendividamento da empresa.

Desde o início deste ano o Ministério da Fazenda tem se dedicado à elaboração de um projeto de alteração da lei de recuperação de empresas. O processo, conduzido por agentes públicos competentes, contou com a colaboração de juristas especializados em direito falimentar-recuperacional. Além disso, abrangeu ampla consulta aos setores interessados e aos profissionais da área. O resultado não é ainda conhecido, mas espera-se a publicação do projeto de lei para breve, contemplando as mudanças de que o instituto necessita, no interesse da economia brasileira.

*Respectivamente, desembargador do TJSP, atual corregedor geral da Justiça, professor de direito comercial da USP e da PUC-SP; e advogado, professor de direito comercial da PUC-SP

Opinião por Manoel de Queiroz Pereira Calças
Fábio Ulhoa Coelho