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A renúncia de Sarney

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Por João Mellão Netto
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Quando comecei a escrever aqui, no Estadão, em 1987, o meu principal alvo era o então presidente da República, José Sarney. Era fácil criticá-lo. O seu governo era caracterizado pela falta de autoridade. Passadas mais de duas décadas, é fácil entender as suas razões. Sarney, à época, não tinha como se fazer valer. O presidente de direito era Tancredo Neves, que morrera sem tomar posse. Quem assumiu o poder, então, foi José Sarney, o vice. Como foi que Sarney, o ex-líder do PDS, se tornou vice na chapa de Tancredo Neves, do PMDB? A estupefação embutida na pergunta se explica: o PDS era o grande partido que dava sustentação aos governos militares, enquanto o PMDB - que sucedeu ao antigo MDB - era o partido da oposição. O que ocorreu foi o seguinte: diante da candidatura oficializada de Paulo Maluf, pelo PDS, uma ala do partido se rebelou. E Sarney foi o seu líder. Tornava-se, por isso, um candidato natural a vice-presidente na chapa oposicionista de Tancredo Neves. Os políticos rebeldes formaram a Frente Liberal, depois PFL. E Sarney, para poder fazer parte da chapa do PMDB, teve de se filiar ao partido. As circunstâncias fizeram com que se tornasse presidente da República. Ele, obviamente, não tinha legitimidade para se impor no cargo. O Ministério inteira fora composto por Tancredo. E este - cujas principais características eram a experiência e a sabedoria política - o formara com base no peso real que cada facção tinha dentro do espectro oposicionista. Sarney, assim, nada podia mexer no quadro de ministros. E, não podendo fazê-lo, não tinha quase nenhuma autoridade no governo. O que se deu a seguir foi a luta de Sarney contra a corrente. Ele demonstrou que tinha grande destreza política. Nesse aspecto, não ficou nada a dever a Tancredo. Aguardou o desgaste natural de alguns de seus ministros para substituí-los por gente sua. Um dos novos ministros, de sua confiança, foi Dílson Funaro, o industrial paulista que, à frente da pasta da Fazenda, levou a efeito o famoso Plano Cruzado. José Sarney, na Presidência da República, nunca pôde exercer o poder em sua plenitude. Como ele próprio veio a reconhecer anos depois, o seu papel era o de garantir a difícil transição entre o período militar - autoritário - e a democracia plena. Não era nada simples. Após 20 anos de governos "revolucionários", pouca gente - dentro das forças que compunham a opinião pública - acreditava, de fato, na eficácia da democracia. E havia razões fortes para tanto. Em primeiro lugar, deve-se levar em conta que a democracia, como regime político, se desmoralizara no Brasil em razão dos incidentes, desmandos e abusos ocorridos nos anos anteriores a 1964. Em segundo lugar, há que ponderar que os 20 anos transcorridos foram tempo suficiente para que toda uma nova geração de adultos se formasse sem ter conhecido ou mesmo vivenciado governos democráticos. O ceticismo, assim, era evidente. E, também, compartilhado por muitos. Coube a José Sarney a amarga tarefa de levar a cabo a transição. E, aos olhos da História, ele ainda haverá de ter reconhecida a sua maestria nesse processo. Ele ainda não foi devidamente reconhecido porque, qual um zumbi, insiste em fazer parte do poder. Se não se tivesse candidatado a presidente do Senado, não estaria vivendo nenhum dos dissabores pelos quais está passando. Sarney deveria ter-se contentado em ser um senador comum. Se o fosse, teria a sua biografia preservada. Para alguém com o seu passado, é muito difícil metabolizar acusações rasteiras de prática de nepotismo e afins. Ele próprio, da tribuna, já se queixou disso. Evocou até mesmo a sua biografia para exigir mais respeito. Faz sentido. O problema é que, por ocupar um cargo de comando, ele tem de se submeter a tanto. Enquanto insistir em ser presidente do Senado, será vítima de ataques desse naipe. Aos quase 80 anos de idade, ele não precisava passar por isso. O que esse posto acrescenta ao seu currículo? Praticamente nada, visto que ele já o ocupou em duas ocasiões anteriores. Sarney está lá apenas para garantir emprego aos seus apaniguados? É pouco provável. Mas, se for isso, ele bem que merece esse fogo cerrado de que está sendo vítima. Ele está lá apenas porque lhe apraz a luz dos holofotes? Alguém precisa dizer-lhe que o calor dessas luzes está reservado para personalidades mais jovens, que tenham estômago suficiente para se submeter aos ataques que lhes são correspondentes. Sarney é dono de uma vasta cultura e escreve bem, também. Esse dom e essa virtude lhe garantiram uma cadeira na Academia Brasileira de Letras. É muito difícil para nós, cidadãos comuns, imaginar que um imortal se disponha a empreender batalhas rasteiras, como as atuais, tão somente para se manter num posto de comando. Submeter-se a tanto é uma crueldade que ele próprio está promovendo contra o seu passado. Ao agir dessa forma, ele está comprometendo a grandeza de sua biografia. A esta altura, ele deveria estar preocupado com ela. A renúncia ao posto, assim, se impõe. Seria um gesto de grandeza que ele próprio presentearia à sua história. Para evitar que o seu nome seja tisnado, maculado mesmo, por tudo o que vem ocorrendo. Senador José Sarney, respeito é algo que se inspira, não que se peça. Se o senhor exige respeito, deveria, antes de tudo, dar-se ao respeito também. João Mellão Neto, jornalista, deputado estadual, foi deputado federal, secretário e ministro de Estado E-mail: j.mellao@uol.com.br Blog: www.blogdomellao.com.br