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Opinião|A selva que nós mesmos muramos

Intervenção federal no Rio de Janeiro tenta secar um caudal de violência e morte

Atualização:

O Rio de Janeiro foi modelo (ou se arvorou como tal) do que é belo e prazeroso e, assim, tornou-se propagandística “porta de entrada” do País. Agora volta ao cenário pelo que tem de horror ou espanto, que culmina com a intervenção militar tentando secar um caudal de morte e violência.

Desde 1960, quando deixou de ser capital da República, do “modelo” só permaneceu intacto o que veio da natureza – a Baía de Guanabara, o Pão de Açúcar, a vista do Cristo Redentor, o verde do verde. As praias poluídas e a brisa do mar infestada de fuligem refletem a mesma visão que transformou em covil do crime o que poderia ser pequeno e permanente paraíso.

Desídia, desdém e desleixo – ou “malandragem”, como diz o povo – dominam o que o Rio tem de exuberante. Nos tempos de capital da República, o falso esplendor da burocracia (com muito emprego e pouco trabalho) fazia brilhar o que não tinha brilho. Era o anel de vidro que, ao sol, parece diamante.

Hoje tudo é visível. Até o carnaval e as passistas seminuas (que nos fazem ver o corpo feminino como uma das belezas da Criação, não como pecado), estão sob domínio de “bicheiros” condenados pela Justiça por vínculos com o narcotráfico. E, por extensão, com o que aterroriza e faz do Rio um amontoado sem paz, em que a única lei é não ter quem imponha a lei.

E “a Cidade Maravilhosa, cheia de encantos mil” transmitiu ao País um estilo de vida em que o dia a dia converge na corrupção e no roubo. O vil assassinato vai além do narcotráfico. Adolescentes matam para roubar um carro, telefone celular ou tênis “de marca”. Não é sequer uma “guerra de classes” de um Robin Hood marxista que assalte ricos em socorro de pobres. Pobres matam também pobres e roubam centavos. O crime tornou-se um dos “monumentos” edificados na cidade, como o Cristo Redentor, os Arcos da Lapa e o Maracanã. 

Ou alguém pensa que a extensa corrupção do governador Sérgio Cabral foi obra solitária e exclusiva, inventada por ele e seus asseclas do PMDB e de outros partidos? Ou que violou terreno virgem de castas e honoráveis donzelas?

Já condenado a mais de um século de prisão e, a cada dia, réu em mais processos, esse Cabral atual descobriu uma terra em que o crime se escondia nas frestas. Como o Cabral das caravelas de 1500, ele apenas redescobriu o paraíso que os nativos da terra conheciam sem explorar.

Em terreno fértil, pôs em prática a observação do “em se plantando tudo dá”, de Pero Vaz de Caminha, escrivão da esquadra! E o agricultor-chefe Sérgio Cabral, virou hipermilionário sem enfrentar secas e demais inclemências vividas por quem, de fato, cultiva a terra.

No final de fevereiro (antes ainda da intervenção militar no Rio), aqui, neste espaço, sob o título A cidade murada e a cidade-selva, Fernão Lara Mesquita lucidamente chamou a atenção para o perigoso erro de vigiar “apenas as consequências” e advertiu sobre a expansão da violência: “Não há como deter isso com polícia. Nada – nem o Exército Brasileiro – resistirá ao contato direto com esse grau de infecção”.

E convicto de que “as doenças da política só se curam com os remédios da política”, sugeriu vigiar as causas por meio de um sistema em que o povo remova quem o engane. A advertência é uma convocatória a buscar as causas da violência para extirpá-la pela raiz.

O Rio não é foco infeccioso único do horror, que está também em São Paulo ou onde for. Identificada na construção de Brasília, em fins dos anos 1950, a corrupção esteve presente (mas escondida) na ditadura militar e, logo, incorporou-se ao cotidiano. Na era Lula foi moeda de troca do PT com os mais diferentes partidos. Com a alta sabedoria do seu chefão Paulo Maluf, o PP comandou o assalto à Petrobrás. Quando o “mensalão” parecia o horror máximo, jovens procuradores da República e a própria Polícia Federal descobriram na Operação Lava Jato a ponta do iceberg que fez o majestoso Titanic naufragar.

Agora, o clímax: o presidente Michel Temer é investigado pela Polícia Federal e as malas (com milhõe$) do seu antigo a$$e$$or passam ao anedotário…

Em dia claro, com políticos e grandes empresas dedicadas a a$$altar, o narcotráfico marginal cresceu. No Rio, virou um “Estado” dentro do Estado, com justiça própria que sentencia à tortura e à morte. E transforma em bandidos os recrutados, sob beneplácito da polícia corrompida.

Violência e vulgaridade são irmãs siamesas. Aqui, de norte a sul, educa-se para a violência através do vulgar. A educação deixou a escola convencional e se aninha na falsa “música” de berros estridentes e letras pornográficas. Ou nos filmes e programas de TV em que a violência e o palavrão se espalham como “virtude”. Com as invencionices mórbidas das “redes sociais” o horror vira modo de vida.

No cume, no topo desse Everest, um novo e perverso comércio travestido de “igrejas” enriquece seus “donos” vendendo “milagres” em nome de Deus. E a transcendência da religiosidade se rebaixa a cobiçado (e caro) objeto de consumo.

O engano e a fraude, ou a violência e a morte, se identificam, assim, com a normalidade. E chegamos ao Rio atual, ocupado militarmente por uma força estranha, mas libertadora, chamada às pressas pela falência total do poder público (e da população) por não reagir à demência dos violentos quando eles eram ainda débeis.

Há protestos por fotografarem os moradores, como se isso ferisse “a intimidade”. Mas em prédios públicos e privados, escritórios ou consultórios, não se fotografam os visitantes e se exigem RG e CPF, sem nenhum protesto?

Na selva que nós mesmos muramos, todos passamos a ser bichos...

*JORNALISTA E ESCRITOR, PROFESSOR DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA, PRÊMIO JABUTI DE LITERATURA EM 2000 E 2005, PRÊMIO APCA EM 2004