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A simbologia de um naufrágio

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Por Redação
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Até ontem ninguém tinha condições de apontar, com segurança, os motivos do naufrágio de uma embarcação, a "Imagination", com mais de 100 pessoas a bordo, no Lago Paranoá, em Brasília, que resultou na morte de pelo menos oito passageiros. Mas as circunstâncias já conhecidas do trágico acidente e o completo desencontro até agora predominante de informações sobre o ocorrido dão uma ideia muito clara de quanto ainda nos falta, num país que ambiciona se ombrear com as grandes potências do chamado Primeiro Mundo, para ser percorrido na longa e desafiadora via do processo civilizatório. O exemplo da triste ocorrência nas águas plácidas de um lago da Capital Federal pode parecer desimportante quando se pretende traçar um perfil amplo da atualidade e das perspectivas do País em que vivemos, mas não discrepa, ao contrário, ratifica amplamente as piores mazelas da mentalidade de governantes e governados. Uma constatação desde logo se impõe: o acidente só pode ter acontecido por culpa da desídia, da irresponsabilidade de todos os envolvidos. Todos têm sua parcela de responsabilidade, desde os poderes públicos aos quais cabia fiscalizar as condições de segurança da embarcação, passando pelos proprietários e tripulantes do barco, cuja obrigação de manter o equipamento em perfeitas condições de uso é elementar, até mesmo os próprios passageiros, que embarcaram despreocupados com a própria segurança, como revela o depoimento do garçom Everaldo Sales da Silva, que admitiu não ter recebido nem solicitado qualquer orientação de segurança por parte da tripulação, embora a passageira Vanda Pereira Dornel, promotora da festa que se realizava a bordo, tenha afirmado o contrário. De acordo com informações da Marinha, uma das causas do naufrágio pode ter sido uma rachadura constatada por um mergulhador, após o acidente, em um dos flutuadores do barco. Mas a mesma Marinha, em nota, havia informado que o "Imagination" passara por inspeção em novembro sem que nenhum problema tivesse sido constatado. E revelou ainda que no momento do acidente a embarcação, com capacidade para transportar 90 passageiros e 2 tripulantes, tinha mais de 100 pessoas a bordo. Irregularidade que passou despercebida pelos quatro agentes que, segundo a Marinha, eram responsáveis pela fiscalização no Paranoá no momento do acidente. O comandante Rogério Leite, da Delegacia Fluvial de Brasília, explicou que esses quatro agentes são "suficientes" para o trabalho, mas, contraditoriamente, admitiu que não conseguem vistoriar, ao mesmo tempo, todos os barcos. Já o governador do Distrito Federal, Agnelo Queiroz, fez um apelo aos proprietários de barcos para que "cumpram com rigor as normas" e manifestou firme convicção no óbvio: é necessário "um grau de fiscalização muito grande em todo tipo de embarcação". Por outro lado, o proprietário e o comandante do "Imagination" garantem que estava tudo na mais perfeita ordem com o barco e não se manifestaram sobre a rachadura constatada em um dos flutuadores. Parece mais preocupado, o primeiro, com os lucros cessantes, e o segundo, com a possibilidade de vir a ser indiciado por homicídio culposo, como já cogitaram fontes da Polícia Civil. Essa "despreocupação" geral, a negligência indiscriminada em relação a direitos e deveres, cujos efeitos se manifestam diariamente em todas as áreas e níveis de atividade - veja-se a política -, costuma ser sociologicamente explicada como fruto do paternalismo que aqui reina desde a era colonial. Governantes se consideram donos e não servidores do bem comum e os governados se conformam com a condição de beneficiários das concessões de quem pode. Pior do que este retrospecto são as evidências de que nada indica uma perspectiva de mudança, até onde a vista alcança. Ao contrário, a história recente do País demonstra que se está enraizando um paternalismo cada vez mais autoritário. Pode parecer que uma coisa não tem nada a ver com outra, mas o naufrágio do Lago Paranoá tem uma enorme dimensão simbólica.