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Opinião|A soberba brasileira em relação ao Paraguai

Atualização:

Tornou-se comum entre os brasileiros o emprego da palavra paraguaio relacionada a algo falsificado ou sem qualidade. No universo futebolístico, a expressão cavalo paraguaio é utilizada em referência a equipe que costuma ganhar vários jogos nas primeiras rodadas de um campeonato, perde o fôlego na reta final e deixa de disputar o título.

Recentemente, o ex-ministro da Educação Renato Janine Ribeiro, em entrevista, acusou a oposição de estar planejando um “golpe paraguaio” contra a presidente Dilma Rousseff. Em seguida, foi a própria presidente que afirmou, em reunião com seu Ministério, que o País vive um clima de “golpe democrático à paraguaia”. A declaração desencadeou protestos do governo do Paraguai.

Que razões levaram os brasileiros, de todas as classes sociais, a incorporar aos seus hábitos vocabulares o uso distorcido de uma palavra que, originalmente, se refere ao nacional de um país vizinho (supostamente amigo e aliado diplomático), passando a conferir-lhe conotação depreciativa? É justificável que, para os brasileiros, o termo paraguaio tenha atingido um sentido tão negativo? Ou tudo isso não passa de uma atitude prepotente de um país que tende a se enxergar como uma “ilha de civilização e progresso” na América do Sul, estando rodeada por um ambiente “selvagem” habitado por “cucarachos” – os nossos vizinhos de origem hispânica? Temos mesmo razões para agir com tal soberba e sentimento de superioridade em relação ao Paraguai e aos paraguaios?

A origem da associação que se faz da palavra paraguaio com tudo o que seja considerado falso ou de pouca qualidade parece estar diretamente relacionada ao trânsito de mercadorias na região fronteiriça entre os dois países e à atividade dos chamados sacoleiros que cruzam a Ponte da Amizade para adquirir produtos (muitas vezes de baixa qualidade ou falsificados) e vendê-los no Brasil. Outros fatos podem ter reforçado esse hábito, como a imagem de um país que é rota do tráfico internacional de drogas (como se o Brasil também não o fosse).

É preciso esclarecer que o Paraguai é um país de pouco menos de 7 milhões de habitantes. Sua população equivale à da área metropolitana do Rio de Janeiro. Difícil imaginar um país tão pequeno, e tão pouco industrializado, como sendo capaz de abastecer ou inundar de mercadorias de pouca qualidade ou pirateadas um mercado consumidor com mais de 200 milhões de pessoas. Não que, obviamente, tais mercadorias não sejam também comercializadas no Paraguai. Mas quem vai até lá comprá-las para vendê-las aqui? É o paraguaio ou o sacoleiro brasileiro? Será que todos os vendedores ambulantes espalhados pelo Brasil são abastecidos de produtos vindos do Paraguai? E os brasileiros? Não falsificam?

O Paraguai tem, ao contrário do Brasil, tradição de uma economia aberta ao mundo, com poucas barreiras ao comércio. As mercadorias que ingressam no país provêm de todos os principais produtores e exportadores mundiais. Qual a culpa dos paraguaios pelo fato de os brasileiros irem até Ciudad del Leste para adquirir produtos (muitas vezes de duvidosa qualidade) para revendê-los a seus compatriotas? O mesmo raciocínio se aplica aos carros roubados no Brasil e levados para o Paraguai. São os paraguaios que vêm até São Paulo, Rio de Janeiro e outros centros urbanos para roubar os automóveis? Brasileiros são meras vítimas?

No que tange ao tráfico de drogas, a falta de vigilância adequada da fronteira é um problema comum aos dois países e nos últimos tempos as autoridades de segurança brasileiras e paraguaias têm desenvolvido operações conjuntas, com o auxílio da Interpol, que resultaram na prisão, no país vizinho, de vários foragidos da Justiça brasileira. Sem o auxílio das autoridades paraguaias seria muito mais difícil essas ações terem sucesso.

Mas é na seara diplomática que a arrogância da posição brasileira em relação ao Paraguai mais se tem mostrado. Em 2012, em vergonhosa ação engendrada com a Argentina, fomos decisivos para a suspensão do Paraguai do Mercosul e da Unasul, sob a alegação de que o processo que resultou no impeachment do então presidente Fernando Lugo (simpático ao bolivarianismo chavista) havia sido ilegal (o que não foi provado). Parece ter contribuído muito para a drástica decisão a resistência do Congresso paraguaio, à época, a aprovar o ingresso da Venezuela no Mercosul, o que curiosamente foi concretizado logo após a suspensão. Desde então fechamos os olhos a todos os flagrantes desrespeitos à cláusula democrática pela Venezuela (como a recente condenação imposta ao líder da oposição Leopoldo López) sem que sequer se cogite de algum tipo de penalidade a esse país. Poucas vezes a máxima “dois pesos e duas medidas” foi tão pertinente.

A ignorância, o preconceito e a soberba maculam a visão brasileira do Paraguai em todas as classes sociais, incluídos os que ocupam os mais altos escalões do governo. É pena que o brasileiro desconheça que é um país encantador e de importância cultural e histórica incalculável – quantos no Brasil conhecem Augusto Roa Bastos? Que ignore suas lutas políticas precursoras no marco dos movimentos de independência da América do Sul. Que não saiba como é bela sua capital, Assunção, que oferece aos turistas muitos serviços de qualidade e a preços bem acessíveis. Que mal tenha ouvido falar de seus tesouros arqueológicos, como as missões jesuítas de Trinidad. Nem mesmo a experiência traumática (especialmente para os paraguaios) da Guerra do Paraguai nos ensinou um pouco sobre esse interessante país e seu povo corajoso, que sabe preservar suas raízes, como a língua guarani, lecionada nas escolas. É vergonhoso para nós, brasileiros.

* CARLOS MAURÍCIO ARDISSONE É DOUTOR EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS PELA PUC-RJ, PROFESSOR DO IBMEC-RJ E DA UNIVERSIDADE ESTÁCIO DE SÁ

Tornou-se comum entre os brasileiros o emprego da palavra paraguaio relacionada a algo falsificado ou sem qualidade. No universo futebolístico, a expressão cavalo paraguaio é utilizada em referência a equipe que costuma ganhar vários jogos nas primeiras rodadas de um campeonato, perde o fôlego na reta final e deixa de disputar o título.

Recentemente, o ex-ministro da Educação Renato Janine Ribeiro, em entrevista, acusou a oposição de estar planejando um “golpe paraguaio” contra a presidente Dilma Rousseff. Em seguida, foi a própria presidente que afirmou, em reunião com seu Ministério, que o País vive um clima de “golpe democrático à paraguaia”. A declaração desencadeou protestos do governo do Paraguai.

Que razões levaram os brasileiros, de todas as classes sociais, a incorporar aos seus hábitos vocabulares o uso distorcido de uma palavra que, originalmente, se refere ao nacional de um país vizinho (supostamente amigo e aliado diplomático), passando a conferir-lhe conotação depreciativa? É justificável que, para os brasileiros, o termo paraguaio tenha atingido um sentido tão negativo? Ou tudo isso não passa de uma atitude prepotente de um país que tende a se enxergar como uma “ilha de civilização e progresso” na América do Sul, estando rodeada por um ambiente “selvagem” habitado por “cucarachos” – os nossos vizinhos de origem hispânica? Temos mesmo razões para agir com tal soberba e sentimento de superioridade em relação ao Paraguai e aos paraguaios?

A origem da associação que se faz da palavra paraguaio com tudo o que seja considerado falso ou de pouca qualidade parece estar diretamente relacionada ao trânsito de mercadorias na região fronteiriça entre os dois países e à atividade dos chamados sacoleiros que cruzam a Ponte da Amizade para adquirir produtos (muitas vezes de baixa qualidade ou falsificados) e vendê-los no Brasil. Outros fatos podem ter reforçado esse hábito, como a imagem de um país que é rota do tráfico internacional de drogas (como se o Brasil também não o fosse).

É preciso esclarecer que o Paraguai é um país de pouco menos de 7 milhões de habitantes. Sua população equivale à da área metropolitana do Rio de Janeiro. Difícil imaginar um país tão pequeno, e tão pouco industrializado, como sendo capaz de abastecer ou inundar de mercadorias de pouca qualidade ou pirateadas um mercado consumidor com mais de 200 milhões de pessoas. Não que, obviamente, tais mercadorias não sejam também comercializadas no Paraguai. Mas quem vai até lá comprá-las para vendê-las aqui? É o paraguaio ou o sacoleiro brasileiro? Será que todos os vendedores ambulantes espalhados pelo Brasil são abastecidos de produtos vindos do Paraguai? E os brasileiros? Não falsificam?

O Paraguai tem, ao contrário do Brasil, tradição de uma economia aberta ao mundo, com poucas barreiras ao comércio. As mercadorias que ingressam no país provêm de todos os principais produtores e exportadores mundiais. Qual a culpa dos paraguaios pelo fato de os brasileiros irem até Ciudad del Leste para adquirir produtos (muitas vezes de duvidosa qualidade) para revendê-los a seus compatriotas? O mesmo raciocínio se aplica aos carros roubados no Brasil e levados para o Paraguai. São os paraguaios que vêm até São Paulo, Rio de Janeiro e outros centros urbanos para roubar os automóveis? Brasileiros são meras vítimas?

No que tange ao tráfico de drogas, a falta de vigilância adequada da fronteira é um problema comum aos dois países e nos últimos tempos as autoridades de segurança brasileiras e paraguaias têm desenvolvido operações conjuntas, com o auxílio da Interpol, que resultaram na prisão, no país vizinho, de vários foragidos da Justiça brasileira. Sem o auxílio das autoridades paraguaias seria muito mais difícil essas ações terem sucesso.

Mas é na seara diplomática que a arrogância da posição brasileira em relação ao Paraguai mais se tem mostrado. Em 2012, em vergonhosa ação engendrada com a Argentina, fomos decisivos para a suspensão do Paraguai do Mercosul e da Unasul, sob a alegação de que o processo que resultou no impeachment do então presidente Fernando Lugo (simpático ao bolivarianismo chavista) havia sido ilegal (o que não foi provado). Parece ter contribuído muito para a drástica decisão a resistência do Congresso paraguaio, à época, a aprovar o ingresso da Venezuela no Mercosul, o que curiosamente foi concretizado logo após a suspensão. Desde então fechamos os olhos a todos os flagrantes desrespeitos à cláusula democrática pela Venezuela (como a recente condenação imposta ao líder da oposição Leopoldo López) sem que sequer se cogite de algum tipo de penalidade a esse país. Poucas vezes a máxima “dois pesos e duas medidas” foi tão pertinente.

A ignorância, o preconceito e a soberba maculam a visão brasileira do Paraguai em todas as classes sociais, incluídos os que ocupam os mais altos escalões do governo. É pena que o brasileiro desconheça que é um país encantador e de importância cultural e histórica incalculável – quantos no Brasil conhecem Augusto Roa Bastos? Que ignore suas lutas políticas precursoras no marco dos movimentos de independência da América do Sul. Que não saiba como é bela sua capital, Assunção, que oferece aos turistas muitos serviços de qualidade e a preços bem acessíveis. Que mal tenha ouvido falar de seus tesouros arqueológicos, como as missões jesuítas de Trinidad. Nem mesmo a experiência traumática (especialmente para os paraguaios) da Guerra do Paraguai nos ensinou um pouco sobre esse interessante país e seu povo corajoso, que sabe preservar suas raízes, como a língua guarani, lecionada nas escolas. É vergonhoso para nós, brasileiros.

* CARLOS MAURÍCIO ARDISSONE É DOUTOR EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS PELA PUC-RJ, PROFESSOR DO IBMEC-RJ E DA UNIVERSIDADE ESTÁCIO DE SÁ