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A sociedade em estado de alerta

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Por Fernando Grella Vieira
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"As leis são como teias de aranha; quando algo leve cai nelas, fica retido, ao passo que, se for algo maior, consegue rompê-las e escapar" (Sólon, político grego, 640-560 a.C.) No início de fevereiro, o Supremo Tribunal Federal (STF), por maioria de votos, fixou entendimento de que uma pena criminal não pode ser executada antes do trânsito em julgado, isto é, sem o absoluto esgotamento das vias recursais (Habeas Corpus nº 84.078). Trata-se de uma decisão alarmante, em nosso sentir, muito embora se reconheça que não faltou quem a aplaudisse entusiasmadamente. É mister que se façam alguns esclarecimentos. O precedente firmado por nossa alta Corte não importou na vedação da prisão processual, isto é, não impede que o réu responda preso à acusação, possibilidade que remanesce somente em casos excepcionais: prisão em flagrante, prisão temporária e prisão preventiva. O que há, então, de novo ou relevante no acórdão proferido há algumas semanas? A consequência da orientação recém-firmada consiste em impedir que, fora dos casos acima mencionados, possa um réu condenado pela Justiça, com respaldo de uma decisão de segunda instância, iniciar imediatamente o cumprimento da pena. O STF se louvou no princípio constitucional da presunção de inocência (ou de não culpabilidade, como preferem alguns juristas). Em termos práticos, se alguém for condenado por um juiz criminal, seu defensor apelar e o Superior Tribunal de Justiça (STJ) - ou o Tribunal Regional Federal (TRF) - confirmar a sentença, a pena não poderá ser imediatamente executada. Por quê? Porque nossas leis permitem que o acusado recorra ao STJ e ao STF. Tais tribunais acabam funcionando como "terceira e quarta instâncias". É bem verdade que a interposição de recursos a esses órgãos esbarra em incontáveis restrições. Essas, contudo, fazem pouca ou nenhuma diferença. Explica-se: até o STJ julgar o recurso e reconhecer (quando for caso) sua total impertinência decorrerão dois anos, no mínimo. Para o STF fazer o mesmo, mais quatro anos se passarão. Numa estimativa otimista, da decisão judicial que condena o agente até o julgamento definitivo perante o STF fluirão aproximadamente seis anos. A injustiça que essa demora propicia é lamentável e seus perniciosos efeitos, incalculáveis. Ruy Barbosa dizia, há mais de um século: "Justiça tardia, injustiça manifesta." O pior, contudo, ainda está por vir. Nosso Código Penal contém uma tabela com diversos prazos prescricionais. São períodos que, uma vez ultrapassados, impedem a punição do agente (ainda que inequívoca a culpa do réu). O instituto da prescrição determina, por exemplo, que, se o juiz aplicar uma pena de até dois anos, não pode transcorrer mais do que quatro entre a sentença por ele proferida e o trânsito em julgado (esgotamento das vias recursais). Percebe-se, a essa altura, o primeiro reflexo da decisão do STF: toda e qualquer condenação imposta em primeira instância, que não ultrapassar o montante mencionado, estará fadada a prescrever (basta levar o caso até Brasília), dando-se a prescrição sem que tenha sido cumprido um dia sequer de pena. Há mais. Fixou-se, há muitos anos, um princípio em nosso sistema judicial segundo o qual o magistrado deve, de regra, aplicar a sanção mínima, só se admitindo maior rigor em situações excepcionais e mediante explícita fundamentação. O juiz brasileiro, portanto, não se porta como o norte-americano, que transita livremente entre o mínimo e o máximo. Pelo contrário, encontra-se amarrado ao mínimo legal, do qual só se livra em alguns casos. Significa dizer que inúmeros crimes, cujo patamar punitivo inicial não ultrapassa dois anos (a grande maioria dos delitos previstos em nosso Código Penal), estão predestinados a ser fulminados pela prescrição posterior à sentença judicial. Eis o quadro atual, reflexo da orientação do STF, que impede a execução da pena imposta, mesmo se confirmada por tribunais estaduais ou regionais federais. Cite-se, à guisa de ilustração, o caso de um motorista que provocou um acidente de trânsito, matando uma pessoa e ferindo outra. A Justiça paulista o condenou a três anos de detenção (com base no Código de Trânsito), concedendo-lhe o benefício da substituição da prisão por penas alternativas. A sentença foi proferida no dia 27 de junho de 2000. Houve apelação da defesa, e o extinto Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo negou-lhe provimento. Inconformados, os advogados interpuseram embargos de declaração, igualmente desprovidos. Não satisfeitos, recorreram novamente, desta vez ao STJ. Os autos aportaram nesta Corte no primeiro semestre de 2002 (Recurso Especial nº 406.867) e, ao ser julgado, em 5 de novembro de 2008, os eminentes ministros se viram obrigados a reconhecer a prescrição do direito de punir do Estado. A culpa foi reconhecida nas instâncias ordinárias, mas, graças aos infindáveis recursos que nossa legislação permite, o processo foi extinto. O que se desenha no horizonte, infelizmente, não parece mais confortador. Isso porque muitos advogados, até então, pensavam e repensavam antes de interpor recursos aos tribunais superiores, justamente porque, enquanto não ocorresse o julgamento final de seus pedidos, temiam que seus clientes ficassem sujeitos à imediata execução da pena imposta. Sem esse receio, certamente o número de recursos procrastinatórios subirá, afogando ainda mais nosso já combalido sistema Judiciário, formando um terrível ciclo vicioso. As teias de nossa Justiça penal, ao que parece, estão cada vez mais tênues. Fiquemos alertas! Fernando Grella Vieira é procurador-geral de Justiça do Estado de São Paulo