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Opinião|A tragédia petista - 2

Atualização:

Nesta página esbocei uma interpretação sociológica acerca do desenvolvimento do campo petista (A tragédia petista, 26/10) e agora cabe determinar uma equação que possa revelar as principais variáveis de sua sustentação. Quem sabe, assim, entenderemos os ingredientes que explicam o continuado êxito eleitoral do PT. Na analogia com a matemática, seriam muitas as variáveis a desvendar, entre as principais e as secundárias. Algumas surpreendem, como a espantosa passividade de nosso povo, sujeitando-se às corriqueiras manipulações do sistema partidário, comportamento que inclui até cientistas sociais com elevada formação científica. Mas outras variáveis não são inesperadas, como o uso do Estado com fins primordialmente partidários ou a ocorrência dos absurdos gastos com propaganda. São fatos que tornam remotos os ideais republicanos que nos deveriam orientar.Neste comentário sugiro que duas constantes e uma incógnita também compõem a equação, todas demonstrativas do crescimento do campo petista, especialmente nos anos pós-Constituinte e no curso da democratização do País. Contudo não são as variáveis que seriam logicamente antecipadas e a incógnita, provavelmente, não tem nenhuma chance de ser desvendada. Já as duas constantes constituem o eixo central do edifício petista.A primeira delas diz respeito à capacidade de elevar ininterruptamente o caudal de votos destinados ao partido. Numa democracia eleitoral, o acesso ao poder e ao Estado requer maiorias em eleições regulares. Aqui, o mecanismo decorreu da sorte circunstancial do campo petista, que foi a explosão contemporânea da expressão participação social. Esta surgira pelas mãos da clássica teoria democrática pluralista, definida, em especial, por autores norte-americanos, como Robert Dahl e outros, nos anos 1970. Mas foi expressão tornada obrigatória apenas na década de 1990, em quase todo o mundo. Ideólogos petistas, entretanto, dela se apropriaram, tornando-a (falsamente) uma prerrogativa da tradição da esquerda.Participação social tornou-se o fulcro da propaganda do partido, prometendo que os cidadãos teriam poder decisório sobre as coisas públicas, um sonho de teorias democráticas que a esquerda petista, espertamente, vendeu como criação sua. Foi assim com o Orçamento Participativo, a grande bandeira do partido naqueles anos, e tem sido da mesma forma com a multiplicação de conselhos, iniciando-se pelo setor da saúde e seus coletivos municipais. Posteriormente, o ideal participativo irradiou-se para as demais áreas, unindo uma narrativa que é irresistível, pois abriria o Estado à voz dos cidadãos, porém combinada a uma camuflada ação partidária capaz de capturar, cada vez mais, currais eleitorais e, ao fim, mais votos. Em poucas palavras: um discurso em si mesmo democrático, mas distorcido pela desonestidade petista, escondendo seu principal objetivo, que é a manipulação dos participantes, vistos apenas como portadores de votos necessários à conquista dos governos.A presidente reeleita conhece bem esse mecanismo: seu antigo abrigo, o PDT, era o principal partido em Porto Alegre, mas foi varrido do mapa pelo Orçamento Participativo, o qual cooptou as lideranças dos bairros, recrutando-as para o guarda-chuva petista. Conselhos e conferências nacionais, somados à oferta de todos os tipos de bolsas: nada disso tem alguma coisa que ver com a venezuelização e menos ainda com a democratização do Brasil. Relaciona-se, exclusivamente, à conquista do Estado por meio de um processo de clientelismo partidário sem precedentes em nossa História.A segunda constante da equação se chama corrupção. Nenhum partido sobrevive sem dinheiro, é preciso financiar seu funcionamento, com custos cada vez mais altos. Aqui serei breve, pois os fatos atuais, divulgados em escala crescente, emudecem a cidadania, perplexa com a ousadia de um partido que antes pregava a correção ética, à exaustão. O assalto à Petrobrás torna tal escândalo o maior já registrado e, simultaneamente, marca o PT como o partido mais corrupto da História brasileira. Os petistas serão capazes de lidar serenamente com os fatos iluminados pelo avanço das investigações? Como responder à colossal transferência de recursos públicos para garantir o sucesso de um partido? E lembremos, pois é gigantesca a crueldade política: o escândalo incide sobre uma sociedade desigual como a nossa, na qual prevalece uma estrutura regressiva de tributos, prejudicando os mais pobres. Como um partido autointitulado de esquerda se pode envolver nesse inominável crime?E assim chegamos ao terceiro elemento que pretendo apontar nestas notas e que diz respeito à incógnita da equação. Ou pelo menos assim aparece, pois ainda não foi decifrada. Trata-se da pergunta: qual o objetivo finalístico de tudo isto? Há no horizonte de longo prazo um projeto para o Brasil ou um plano para reconfigurar a Nação que igualmente descreva a estratégia do jogo? A resposta a essas indagações realça a maior de todas as vilanias, pois esses objetivos são inexistentes. Deixo o desafio: que alguém aponte algum documento de alguma significação mais substantiva, com a assinatura do Partido dos Trabalhadores, no qual esteja delineado um cenário de transformações para o Brasil. Como insistido no artigo anterior, o partido deixou de pensar desde os anos 90 e, em tempos recentes, tem sido incapaz de sequer refletir sobre o País, apontando os desafios e as mudanças que nos fariam uma Nação próspera e justa. Conformou-se com as delícias do poder, do consumo e do dinheiro produzidos pela ascensão social de seus operadores.Esse é o coração da tragédia petista e nos deixa, os cidadãos, prostrados e à espera. Seria o anúncio da mudança que os atuais detentores do poder nem ao menos sabem enunciar, mesmo que retoricamente.SOCIÓLOGO, É PROFESSOR APOSENTADO DA UFRGS (PORTO ALEGRE). E-MAIL: Z.NAVARRO@UOL.COM.BR

Opinião por ZANDER
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