Imagem ex-librisOpinião do Estadão

A união contra o terror

Exclusivo para assinantes
Por Redação
3 min de leitura

As ações terroristas, que começaram com o atentado contra o jornal satírico Charlie Hebdo e mataram 17 pessoas na França, mexeram com os brios da Europa e do mundo. No domingo passado, houve a maior manifestação pública da história da França, que reuniu 3,7 milhões de pessoas em Paris e em diversas cidades do interior e contou com a participação de chefes de Estado de 50 países. Em solidariedade às vítimas dos atentados da semana passada, as pessoas foram às ruas para demonstrar o seu apreço pela liberdade e pela tolerância.

O ato de domingo começou com uma convocação feita por partidos de esquerda logo após o atentado contra o Charlie Hebdo, mas já ao longo da semana passada o movimento passou a ter um perfil multipartidário, multiétnico e até mesmo ecumênico. Os jornais do mundo inteiro ressaltaram a presença não pequena - entre os 3,7 milhões de manifestantes - de imigrantes das mais diversas nacionalidades: ucranianos, curdos, latino-americanos, etc. Também foi mostra desse pluralismo a presença do premiê israelense, Binyamin Netanyahu, e do chefe da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas.

Essas manifestações foram uma reação quase que instintiva de reafirmação de valores que, estando na origem da identidade europeia, superam suas fronteiras e sustentam boa parte do mundo civilizado: a liberdade e a tolerância.

Não se pedia vingança. Não se pedia mais sangue. Pedia-se paz. Pedia-se tolerância. Pedia-se respeito pela diversidade. Vê-se que a violência motivada pelo fanatismo conseguiu despertar o seu inverso, gerando como resposta um clamor unânime pela liberdade de expressão e a convivência - mais que a coexistência - pacífica.

Evidencia também que o mundo contemporâneo - e, no caso, a sociedade europeia - consegue separar os âmbitos. Uma coisa são as medidas de segurança que os governos devem implementar com vistas à segurança da população - e deixar de cumprir esse dever constituiria uma grave imprudência. Outra coisa é a resposta da população, que não sai às ruas para pedir vingança, mas sim liberdade, tolerância e paz. Segurança e ordem pública, por um lado. Liberdade e compreensão, por outro. Não são coisas antagônicas.

A reação mundial diante do atentado contra o jornal Charlie Hebdo não significa idealizar, nem muito menos sacralizar, o conteúdo do jornal satírico, tantas vezes considerado abusivo e de mau gosto. As manifestações de solidariedade pelos cartunistas assassinados não são uma aprovação do conteúdo que eles produziram ao longo das décadas. Entendê-las desse modo seria não entender a liberdade de expressão. Não se defende o que cada veículo ou pessoa expressa, mas a possibilidade de que cada um se expresse com liberdade. No caso específico do Charlie, o tema da liberdade ganhava especial relevo, já que sua proposta era trabalhar sempre no limite - ou extrapolando os limites - com sua irreverência. Para eles, talvez existissem apenas os limites legais.

A distinção entre liberdade de expressão e aprovação do conteúdo publicado é o que os terroristas não entenderam ou não quiseram entender - criados que são no caldo de cultura da violência e da morte. E foi exatamente essa distinção que levou a população francesa, com sua incrível variedade étnica, às ruas no domingo passado. Ela defendia não as charges - ainda que entre os 3,7 milhões seguramente estariam os seus fiéis admiradores -, mas a possibilidade de que exista um veículo que publique algo que chega às vezes a irritar. É que a irritação provocada pela sátira ou pela ironia é muito diversa da ofensa da violência física. A irreverência, enquanto irreverência, nunca é violência.

Em momentos dolorosos diante de tamanha brutalidade dos criminosos, não deixa de ser positivo que a maior manifestação pública da história da França tenha sido em prol da liberdade. O tempo presente é cheio de desafios - e o terrorismo é seguramente um desafio não fácil de ser resolvido -, mas os tempos atuais não são tempos sombrios. A reação francesa - e, não apenas francesa, a reação internacional - aos atentados mostra que o mundo contemporâneo sabe onde buscar forças para resistir. Na liberdade e na convivência pacífica. Ou seja, há espaço para a esperança.