28 de março de 2012 | 03h07
A primeira motivação para o ataque sistemático, desproporcional e absolutamente inócuo (pelo menos tem sido até agora) atende a uma questão: "Por que ela e não eu?" É claro que deve haver no Brasil milhões de cidadãos e cidadãs que se sentem mais preparados do que a economista Dilma Rousseff para exercer a Presidência da República. Só que a eleita foi ela e a ela cabe nomear, se não todos, porque tem realmente de aceitar indicações das bases para sobreviver politicamente, a maioria dos ministros que a ajudam a governar. Haverá também milhões de brasileiros decentes e bem-intencionados à espera de um convite do Planalto para ocupar uma pasta - da Fazenda à da Pesca. Pode ser que alguns façam como aqueles comunistas de antanho que ficavam no aguardo da prisão de mala e cuia prontas, com escova de dentes, dentifrício e sabonete entre os pijamas, naquele tempo em que nossas prisões ainda permitiam esses luxos. No entanto, quase todos, coitados, esperarão em vão. Pois muitos são candidatos e poucos serão escolhidos, lei darwiniana inventada pelo profeta galileu. Para estes a resposta apenas inverte a questão: "Por que eu e não ela?"
Pois o diabo é que a ministra da Cultura tem, digamos, pedigree para o posto: é filha do professor (da USP) Sérgio Buarque de Hollanda, autor de Raízes do Brasil, obra clássica que ilumina o entendimento histórico e sociológico de nosso país, e de Maria Amélia, Memélia, que virou uma espécie de padroeira do PT de Lula em suas primeiras derrotas para a Presidência. E, convenhamos, a moça é irmã do maior ícone vivo da cultura brasileira, Chico Buarque de Hollanda. Isso basta para justificar a nomeação? Mas é claro que sou o primeiro a responder que não. Só que, ainda assim, quem for capaz de enxergar além do próprio nariz deveria respeitá-la ao menos por esta razão. As cenas de grosseria explícita registradas nessa guerra sem quartel contra a ministra são, para começo de conversa, demonstrações de uma cafajestice na qual o mundo é pródigo e o Brasil, principalmente a patrulha cultural do PT, recordista mundial.
Sou do tempo em que derrotado cumprimentava vencedor pela simples e boa razão de que a civilidade é uma das condições para a permanência do jogo democrático. Juca Ferreira, segundo ministro de Lula e antecessor de Ana, entrou no governo pela porta da cozinha de Gilberto Gil. Sob os auspícios do sonho espanhol de recolonizar o mundo, e não mais apenas a América não imperialista, o artista e seu "maçaneta" espalharam o passa-moleque, conveniente para os grupos que os cortejam e as produtoras multinacionais de conteúdo, de que cultura é um bem coletivo e um meio de aumentar o acesso do membro da comunidade pobre da periferia do Ó é reduzir-lhe o custo com o abatimento do direito do autor. Sob seu patrocínio no MinC, venderam-se o furto fácil da internet aberta (Creative Commons) e a falácia de que produto cultural bom não é o de qualidade, mas o mais barato. E o autor que se "exploda".
Ana assumiu o ministério enfrentando sem estardalhaço, com seu estilo doce e firme, esse esbulho "politicamente correto". O direito do autor e o mercado são conquistas da civilização que estabelecem o único critério pelo qual uma produção artística ou cultural deve ser avaliada: o mérito do talento. O melhor é melhor e vive do que faz. Gil e Juca tentaram inverter essa constatação feita pelos iluministas franceses, propondo substituir a qualidade pela quantidade. E defenderam, ao longo de oito anos, a redução do direito autoral e a submissão do mercado à tirania do lumpesinato. Que Chico Buarque, que nada! O povão quer o funkeiro da Rocinha.
O caso é que há lugar para todos no mercado - o xote pé de serra e o forró de plástico. O povo ouve o que quer e paga pelo que prefere ouvir. Casas lotadas por Chico Buarque no HSBC Brasil não tiram fãs dos shows de Criolo. O mercado garante o moço bonito que virou unanimidade nacional e o poeta de vielas das favelas. Ao Ministério e às Secretarias Estaduais de Cultura não cabe tutelar o lumpemproletariado, mas incentivar orquestras sinfônicas e produções de vanguarda. Além de pegar R$ 1,64 bilhão para bater recorde sem precedentes em investimentos na pasta (furto o valor de artigo do cineasta Cacá Diegues em O Globo de sábado).
Não me lembro de ter lido estes números na entrevista de Juca Ferreira à Folha de S.Paulo em que ele inaugurou no Brasil o choro dos substituídos com um show de grossura e ressentimento explícitos, desconhecendo evidências como o fato de o investimento em Centros de Cultura ter passado de R$ 50 milhões no último ano de Juca/Lula para R$ 62 milhões no primeiro sob Ana/Dilma, com previsão de R$ 114 milhões para 2012.
Como uma forma de desqualificar a ministra, seus solertes detratores, de olho no butim, dizem que ela só não caiu porque Dilma não quer dar o braço a torcer. Quem acredita no mérito e desconfia do uso do lumpesinato reza todo dia para que o braço da presidente prossiga duro de torcer. Esta guerra não é fácil, mas não pode ser comparada com a crise da base aliada.
*JORNALISTA E ESCRITOR, É EDITORIALISTA DO JORNAL DA TARDE
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