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Opinião|A virtude e o Direito

Não é o réu que não pode ser presidente, é o presidente que não pode ser réu

Atualização:

Bernard Mandeville (1670-1733) lançou com uma provocação as bases fundamentais da teoria da mão invisível: a soma de todos os vícios – e não a universalização das virtudes – produz a cooperação que informa a sociedade bem ordenada. Para Mandeville, a sociedade inglesa de sua época cometera a suprema corrupção: aquela que degrada e inverte conceitos para manter a hegemonia dos hipócritas.

A substância do conceito de virtude, que se associa a categorias societais como filantropia e assistencialismo, seria uma obsessão egoística para provar-se melhor que os outros. Mandeville ilustra seu pensamento na Fábula das Abelhas (Fable of the Bees, 1714), em que paradoxalmente o aperfeiçoamento moral leva uma colmeia à completa estagnação.

A medida cautelar proferida pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Marco Aurélio Mello para apear o presidente do Senado, Renan Calheiros, estava imbuída de virtudes, e essa foi a razão de sua desgraça. Sob o olhar do público nacional, o ministro teve a coragem de pôr ponto final na carreira de malversações do presidente do Senado. Na perspectiva de Mandeville, a virtude de Marco Aurélio foi fazer o País balangar na boca do precipício.

Mas por que diabos não submeteu previamente decisão tão extrema ao colegiado? Para não dividir a recompensa, para que a decisão tivesse mais chances de vingar depois de se fazer fato consumado, ou pela combinação das duas coisas.

Por ser bem-intencionada por demais, a decisão de Marco Aurélio é incompatível com a Constituição da República, seja em sua dimensão gramatical, seja como expressão dos fatores reais de poder. A liminar do ministro baseou-se no pressuposto de que já se contavam no STF 6 dos 11 votos possíveis no julgamento em curso a favor da tese de que réu não pode ocupar cargo em linha de sucessão do presidente da República. Logo, assim que o Supremo decidiu na semana passada haver elementos suficientes para processar Renan criminalmente, este perdera a condição de seguir no cargo.

Para o leigo, essa matemática faz sentido, mas não para quem conhece o Direito e desconfia das próprias virtudes. Formalmente, a decisão que tornou Renan Calheiros réu ainda não existe, porque não foi publicada. E quando for ainda estará sujeita a recurso.

Por outro lado, até que os 11 ministros se pronunciem definitivamente sobre a questão Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 402, não se pode afirmar que o STF tenha adotado a tese de que réu não pode figurar na linha de sucessão presidencial. Pelo regimento do Supremo, é possível que os ministros mudem os seus votos diante da tomada de posição dos colegas. A liminar de Marco Aurélio, além de decapitar o Senado, amordaçava o STF.

Além disso, há duas nulidades evidentes na ADPF 402. A primeira é que o Senado Federal deveria ter sido intimado a se manifestar sobre seu objeto, mas não foi. A segunda é que a Rede Sustentabilidade formulou na ação dois pedidos: um principal (afastar Eduardo Cunha da presidência da Câmara dos Deputados) e um subsidiário (proibir que réu em processo criminal substitua o presidente da República).

Qualquer estagiário de Direito sabe que no processo judicial o pedido subsidiário só é analisado se o principal for indeferido. No caso, porém, com o afastamento de Eduardo Cunha, em outro processo, o pedido principal da ADPF ficou prejudicado, o que tornou ocioso o pedido subsidiário (accesorium sequitur principale).

Exemplo: pede-se numa ação que fulano devolva o celular ou, subsidiariamente, pague indenização. Se antes de julgar o processo o celular é devolvido, não faz sentido condenar o réu a pagar indenização.

Com isso, a ação que serviu de base para o afastamento liminar de Renan deveria ter sido arquivada, por perda do objeto. O procurador-geral da República levou ao STF parecer nesse sentido em agosto passado. Depois mudou de ideia, sabe-se lá por quê. Não bastasse, ainda que virtuosa, é furada a tese da ADPF 402.

A Constituição de 1988 estabelece que o presidente não pode ser processado por crime cometido antes ou fora do exercício do mandado. Por essa razão, o réu em processo penal que assumir a Presidência da República ganha imunidade de jurisdição penal. Não é, portanto, o réu que não pode ser presidente. É o presidente que não pode ser réu.

O presidente até pode ser réu, mas apenas por crimes cometidos no exercício do mandato e mediante prévia autorização de dois terços dos membros da Câmara dos Deputados. O que o STF está para fazer na ADPF 402 é inserir na Constituição, por meio de analogia capenga, uma regra de virtude, e não de Direito.

A Constituição não deveria ser emendada por analogia e ainda mais para prejudicar o gozo de direitos políticos. Hoje o prejudicado é Renan. Amanhã pode ser Madre Teresa de Calcutá.

Contudo, se o STF insistir em fazer essa emenda com agressão do texto, poderia poupar ao menos a lógica. A regra constitucional é que o presidente da República só pode ser réu pelo prazo máximo de seis meses e mediante autorização prévia da Câmara dos Deputados. Por que isso? Para que essa blindagem? Para que o STF não interfira no exercício da Presidência da República sem o consentimento do Poder Legislativo. É imperativo do princípio da separação dos Poderes.

Por isso, a analogia perfeita seria ampliar essa blindagem, sem tirar uma vírgula, para todos os que estejam em linha de sucessão do presidente da República. Ou seja, em vez de perder a presidência do Senado, Renan teria seu processo penal anulado.

O lamentável fato daquela triste semana é que o Poder Judiciário deveria refluir não para poupar a delinquência, mas para preservar seu próprio prestígio, sem o qual não se poderá coibir a corrupção. A começar pela corrupção do conceito de virtude.

*Advogado de carreira do Senado, é professor de direito do Centro Universitário de Brasília (Uniceub)