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A visita de Kerry

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Por Redação
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Seria da ordem natural das coisas se fossem apenas jogo de cena as duras palavras que o secretário de Estado americano, John Kerry, ouviu publicamente em Brasília do seu colega Antonio Patriota sobre a parte que recaiu sobre o País da megaoperação de espionagem eletrônica global conduzida pela Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos (NSA, na sigla em inglês) e denunciada em maio último pelo ex-analista de inteligência Edward Snowden. No entanto, a indignação do governo brasileiro soa genuína. Não que o Itamaraty e o Planalto, para não mencionar os órgãos federais de informação, sejam ingênuos a ponto de imaginar que algum país do mundo, em condições de bisbilhotar os demais, deixaria de fazê-lo quando se tratasse de amigos, em obediência ao princípio cunhado pelo legendário secretário de Guerra dos EUA, Henry Stimson (1867-1950). "Cavalheiros", dizia ele, "não leem a correspondência de outros cavalheiros."Mas o que levou o chanceler Patriota, em entrevista ao lado de Kerry, a ir além de qualquer outro protesto estrangeiro audível contra a amplitude das ações da NSA foi, paradoxalmente, o prolongado período de harmonia e cooperação entre as duas nações, não obstante eventuais divergências, com as quais convivem perfeitamente bem, como diante dos problemas do Irã, Síria e Venezuela, por exemplo. Kerry, aliás, veio preparar a primeira visita de Estado da presidente Dilma Rousseff aos EUA, prevista para outubro, com tudo de positivo que isso costuma proporcionar na esfera diplomática. Patriota falou do risco de que uma "sombra de desconfiança" se projete sobre as relações bilaterais, caso o contencioso da interceptação de comunicações eletrônicas e telefônicas de brasileiros não seja tratado de "modo satisfatório". Por sua vez, na reunião de uma hora com o enviado americano, Dilma cobrou proteção para o conteúdo dos grampos envolvendo brasileiros.O Brasil não desdenha dos imperativos de segurança em nome dos quais, depois do ultraje do 11 de Setembro, Washington adotou políticas que chegam a violar os tratados internacionais de que é signatário e a desrespeitar os direitos individuais consagrados na sua Constituição. O fato de o Capitólio chancelar essas políticas - como Kerry ressaltou em Brasília - não as torna, porém, mais legítimas. A "terra dos livres" não deixou de ser uma democracia, mas é uma democracia vigiada. A perda relativa da privacidade de inumeráveis pessoas, alega a Casa Branca desde os tempos de Bush, teria permitido cortar pela raiz diversos outros atos de terror em solo americano e no exterior, garantindo também, segundo Kerry, a incolumidade de brasileiros. Isso é obviamente impossível conferir. Mas é conhecida a lei de bronze segundo a qual quanto maior, mais difusa e mais premente a "necessidade de saber" que os governos invocam para salvaguardar a segurança nacional, tanto maior o perigo de perversão dos instrumentos reunidos para esse fim.Referindo-se certa vez ao infame Serviço Nacional de Informações (SNI) da ditadura de 1964, o general Golbery do Couto e Silva confessou ter criado "um monstro". Que se dirá, então, do monumental aparato americano de espionagem, com os seus extravagantes recursos não contabilizados e as decisões de seus generais protegidas do escrutínio público? Marx vivia repetindo o dito do poeta e dramaturgo romano Públio Terêncio (185 a.C. - 159 a.C.): "Nada do que é humano me é estranho". Quando um órgão do mais poderoso Estado do mundo age como se essa também fosse a sua insígnia, não há limites para o que é capaz de perpetrar. A eficiência de uma NSA pode variar na razão inversa de seu porte - segundo especialistas, os EUA perdem para Cuba na matéria. O que varia na razão direta é a sua expansão e os interesses de toda ordem que agrega, para muito além dos objetivos que lhe deram origem - e de qualquer consideração com o pudor.Talvez para aplacar as sensibilidades brasileiras, Kerry teria admitido em conversa reservada com Patriota, segundo o Valor, que Washington deveria ter dado ciência prévia de suas interceptações aos países amigos. Mas, como disse o chanceler, "ouvir esclarecimentos não significa aceitar o status quo".