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Opinião|Abomináveis cunhadas

Atualização:

O processo legislativo brasileiro começa a ser reinventado pelo presidente da Câmara dos Deputados. Concordemos ou não com os resultados provisórios dessa empreitada (entre outros, a aprovação do financiamento privado de campanha e a redução da maioridade penal), a reinvenção não veio para o bem: nem do governo, nem da oposição; nem mesmo dos que, de tão indignados com a libertinagem alheia, passaram a “agir” por conta (agredindo verbalmente ex-ministros em restaurantes, colando no tanque de gasolina de seus automóveis adesivos que retratam a presidente de pernas abertas, jogando tinta azul nas ciclovias vermelhas, assediando imigrantes haitianos e médicos cubanos, lutando, enfim, para construir um País à sua imagem e semelhança). Alguns alpinistas do poder central farejaram o momento propício para apostar nesse arriscado atalho de quebra institucional. O mesmo atalho que poderá vitimá-los mais tarde.

A certificação democrática de um regime político supõe dois atributos: um de forma e outro de substância. Quanto à forma, uma democracia precisa realizar eleições periódicas, livres e lastreadas no sufrágio universal; precisa produzir leis a partir de um processo legislativo que dê voz aos vários representantes eleitos e à sociedade; precisa, no mínimo, que autoridades públicas respeitem e apliquem imparcialmente as regras do jogo. Gostemos ou não das decisões finais, elas recebem um valioso pedigree quando respeitam o “devido processo democrático” (que abrange o “devido processo legislativo”): um certo “modo de fazer”, valioso em si mesmo, sem o qual decisões coletivas se tornam inválidas. Não são firulas burocráticas, mas rituais participativos e deliberativos que conferem respeitabilidade à decisão final.

Ainda assim, o pedigree não basta. Para além da exigência sobre o “como decidir”, a democracia também se preocupa com “o que decidir” (ou não decidir). Impõe limites à maioria em nome da proteção de cidadãos livres e iguais. Por melhor que seja o processo, por mais convencida e coesa que esteja a maioria, no núcleo duro da Constituição não se toca. Serão genuinamente democráticas as decisões que, além de receber aquele pedigree processual, não violem direitos. Sempre foi e sempre será complicado institucionalizar esses dois requisitos, que ocasionalmente entram em choque. No Brasil, cabe sobretudo ao STF a magnífica tarefa de avaliar o cumprimento de ambos.

A atual agenda legislativa da Câmara dos Deputados fez soar o alarme nas duas direções: por ignorar diretrizes processuais e por estar na iminência de violar direitos. Sobre a violação de direitos caberia novo artigo nesse espaço. Atenho-me à deterioração processual em curso.

Eduardo Cunha assumiu a presidência da Câmara com a promessa de recuperar a dignidade de um Parlamento que, na sua visão, vinha sendo subjugado pelo Executivo. Dias depois de eleito cunhou o mote de sua gestão: como a maioria do povo brasileiro seria, segundo entende, conservadora, “é só deixar que a maioria seja exercida, e não a minoria”. Sugeriu um modelo bruto de plebiscitarismo, uma esperta perversão da democracia (tanto na forma quanto na substância).

Sua sugestão não ficou apenas no mundo das ideias. Com o objetivo, nas suas palavras, de tirar “esqueletos das gavetas”, disparou uma desconcertante “Blitzkrieg” legislativa. Desengavetou os projetos de sua predileção e se pôs a votar a toque de caixa temas delicados da política brasileira. O volume e a velocidade geraram efeito diversionista, pois nenhuma democracia tem fôlego para debater e refletir adequadamente sobre tantos temas de uma vez.

O presidente da Câmara é conhecido como expert no regimento, tanto nas suas regras quanto na sua jurisprudência. Destila autoridade e confiança quando justifica seus atos por meio interpretações pouco convencionais da norma regimental. No entanto, não é esse o único segredo do seu peculiar sucesso até aqui. Percebe-se que sua ascendência sobre boa parte da Casa legislativa se deve à indisfarçável extrainstitucionalidade de seus recursos de poder: personaliza a agenda legislativa; convoca por celular, da sua cadeira no plenário, deputados a votar quando nota risco de derrota; convence, numa madrugada, deputados a inverterem voto que proferiram na noite anterior. Usa de todo o seu leque de poderes discricionários para obter vitórias a fórceps, distribuindo contrapartidas que ainda conhecemos mal.

Sempre revestido de uma capa de legalidade na superfície, seu modus operandi configura abuso de poder (no jargão técnico-jurídico, desvio de finalidade). A legalidade dos seus atos será em breve examinada pelo STF, que precisará ter, além de inteligência jurídica, destreza política para lidar com a postura beligerante do presidente da Câmara. O próprio tribunal não deixou de receber recados do parlamentar. Mensagens como a seguinte: “O Supremo no máximo analisa a constitucionalidade ou não do produto acabado, que é a lei final.” Como sempre, teve na ponta de língua um precedente do STF, que, num caso de 1996, se absteve de intervir no processo legislativo. Ignora outros tantos precedentes do tribunal, pois sabe que de 1996 para cá o STF vem construindo nova postura a respeito, e que essa postura é menos leniente do que ele anuncia, menos permissiva do que ele deseja.

Não estamos diante de violações ordinárias e acidentais dos trâmites internos daquela Casa, mas de quase ruptura da normalidade institucional. A democracia brasileira, nos últimos meses, esteve refém do cesarismo parlamentar. Não deixemos que essa alcunha defina a política nacional daqui em diante.

*Conrado Hübner Mendes é professor de Direito Constitucional na Faculdade de Direito da USP, é doutor em Ciência Política pela USP e doutor em Direito pela Universidade de Edimburgo

Opinião por Conrado Hübner Mendes