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Abuso crônico

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Por Redação
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Não tivesse o deputado Edmar Moreira, como se inconsciente fosse do próprio currículo, aceitado o cargo de corregedor da Câmara dos Deputados - no qual não resistiu mais do que uma semana, por sabidas razões -, certamente não teria vindo à tona o escândalo da malsinada "verba indenizatória", que há oito anos vem complementando indevidamente os salários dos parlamentares que dela abusam. Como a nova direção da Câmara determinou que as notas fiscais relativas ao uso dessa verba mensal, de R$ 15 mil para cada parlamentar, sejam divulgadas só a partir do corrente mês, decretou-se uma espécie de anistia geral, coerente com o princípio da ética pragmática que reza que "quem abusou abusou; quem não abusou não abusa mais" - e está tudo resolvido. Edmar Moreira, depois de conhecido o caso do castelo de R$ 25 milhões não declarado à Receita Federal, tornou-se suspeito de ter usado recurso público em benefício próprio, por ter pago, em 2007 e 2008, R$ 230,6 mil da verba indenizatória a empresas de sua propriedade, a título de prestação de serviços de segurança. Mas quantos outros parlamentares não terão usado essa verba para contratar serviços (reais ou fictícios) de empresas de suas próprias famílias? A partir de agora - e só agora - essa prática obviamente imoral está formalmente proibida. O fato inegável é que essa e outras práticas, igualmente imorais - porque colocam recurso público à disposição de interesses privados -, não foram proibidas desde o início, há oito anos, porque a verba indenizatória não passou de um disfarce para o aumento de ganhos dos ilustres parlamentares federais. A lista dos abusos com os penduricalhos apensados aos salários parlamentares - isto é, dos que se conhecem até agora - é longa. Desde 2005 o senador Tasso Jereissati usou R$ 469 mil de sua verba oficial de bilhetes aéreos para fretar jatinhos, como revelou a Folha de S.Paulo. O senador cearense tem seu próprio avião, mas, quando ele não está disponível, acha natural usar dinheiro público para pagar a locação de outro avião. Ele obteve autorização para tal prática depois de solicitá-la ao então diretor-geral da Casa, Agaciel Maia (o mesmo que caiu por ter casa de alto valor não declarada à Receita), e ser atendido pelo então primeiro-secretário da Casa, Efraim Moraes, sem consulta à Mesa Diretora. Serão, então, essas duas brechas - a das verbas indenizatórias e a das passagens aéreas - os únicos ralos por onde escoa perdulariamente o dinheiro público no Congresso? Dificilmente. Os casos de abuso, ainda que crônicos, só vêm à tona quando ultrapassam a fronteira do disfarce e viram escândalo, como ocorreu com as horas extras pagas em pleno recesso parlamentar. É dizer o obvio afirmar que seria um imperativo moral, para cultivar o respeito das atuais e futuras gerações pela classe política e pelas instituições do Estado Democrático de Direito, abolir os numerosos privilégios desfrutados pelos representantes do povo - a começar pelo número de salários, que ultrapassa em muito o número de meses do ano. Mas se isso é comprovadamente impossível, bem que poderia haver um mínimo de disciplina na regulamentação do uso de dinheiro público no Legislativo. E, na cobrança desse uso, indispensável seria a imposição de medidas punitivas para os que não souberem distinguir o interesse público da locupletação privada. Parece, no entanto, que exemplo contrário a essa cobrança está tendo lugar no Conselho de Ética, onde corre o processo contra o indigitado castelão. Pela primeira vez se encaminha à Mesa Diretora representação contra um parlamentar sem se especificar a punição pretendida - se advertência, suspensão ou cassação. Muito menos se fala em devolução da verba gasta indevidamente. Trata-se, pois, da adoção de um inédito sistema de "punição flexível". Tal representação parece - novo escândalo! - endossar as palavras do deputado Edmar Moreira, que ao assumir a Corregedoria da Câmara dissera que os deputados não devem julgar seus pares, porque estão impregnados do "vício da amizade". Revela-se, com isso, o significado que, na ética legislativa cabocla, tem a palavra amizade.