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Opinião|Acordo entre o Brasil e a Santa Sé

Uma peça jurídica entre dois sujeitos soberanos, reconhecidos pelo Direito Internacional

Atualização:

No dia 13 de novembro de 2008 foi assinado no Vaticano o acordo entre o Brasil e a Santa Sé sobre o estatuto jurídico da Igreja Católica no nosso país. No ato, o arcebispo Dominique Mamberti, secretário para as Relações com os Estados, da Secretaria de Estado da Santa Sé, representou a Igreja Católica e o então ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, representou o governo brasileiro. Quase um ano depois, em 7 de outubro de 2009, o Congresso Nacional aprovou o acordo, que foi assinado como Decreto Legislativo n.º 968 pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva e entrou em vigor, com força de lei, no dia 11 de fevereiro de 2010.

Trata-se de uma peça jurídica concordada entre dois sujeitos soberanos, reconhecidos pelo Direito Internacional: de um lado, a República Federativa do Brasil e, de outro, a Santa Sé, denominação internacionalmente reconhecida da sede da Igreja Católica Apostólica Romana. Acordos internacionais são celebrados entre entes reconhecidos pela comunidade internacional, os quais ajustam a vontade de cada qual para atingir alguma finalidade comum, obrigando-se por meio das cláusulas que criam e concordam entre si. A Santa Sé tem o status de país independente e autônomo, reconhecido pela maioria dos países mediante a troca de embaixadores e o estabelecimento de vários tipos de tratados e acordos bilaterais de recíproco reconhecimento e colaboração. Os embaixadores da Santa Sé são denominados núncios apostólicos.

A celebração de acordos da Igreja Católica com diferentes países não fere o princípio da laicidade do Estado e do ordenamento jurídico democrático pluralista de um país. Ao contrário, quando um pacto internacional entre um Estado e a Igreja Católica é firmado, está implícito o reconhecimento, sem ambiguidade, da verdadeira laicidade do Estado e se explicita em termos práticos a efetivação do seu significado. No caso, não se trata de garantir privilégios para a Igreja Católica, mas de assegurar a liberdade religiosa e de conferir clareza e solidez jurídica às relações da Igreja e das instituições que a representam no ordenamento jurídico e no quadro institucional do País. Pelo acordo se afirmam a liberdade religiosa e suas implicações, mediante o reconhecimento de iniciativas próprias da instituição religiosa postas a serviço da sociedade. E isso é aplicável também a outras confissões religiosas.

A celebração do acordo da Santa Sé com o governo brasileiro, longe de ser um raridade, faz parte de uma praxe consolidada da parte da Igreja Católica. Numerosos acordos e tratados internacionais foram firmados entre a Santa Sé e países de todos os continentes, muitos dos quais não são de maioria católica ou cristã. Contudo a assinatura do acordo entre o Brasil e a Santa Sé representou um momento histórico, havia muito esperado.

Antes da proclamação da República, as relações entre Estado e Igreja eram reguladas pelo denominado Padroado, uma espécie de tratado que vigorou durante o período colonial e também durante o Império, mas foi abolido com o advento da República. Desde então deixou de existir um instrumento oficial que mostrasse com clareza qual é o estatuto jurídico, no Brasil, desta instituição chamada Igreja Católica Apostólica Romana.

Na legislação brasileira, é bem verdade, havia leis diversas e práticas jurídicas consuetudinárias relativas à Igreja Católica e às demais igrejas e religiões. Faltava, porém, um corpo jurídico orgânico, até mesmo para facilitar o conhecimento e a aplicação das leis já existentes.

O acordo tem 20 artigos, que tratam das recíprocas competências internacionais para firmar esse instrumento jurídico bilateral. O Estado brasileiro reconhece a personalidade jurídica da Igreja Católica e das instituições canônicas que a representam, como a conferência episcopal, dioceses, paróquias e suas equivalentes. A Igreja Católica reconhece e respeita a Constituição e as leis brasileiras. 

O acordo prevê o tratamento a ser dado às organizações eclesiásticas que, além dos seus fins religiosos, também têm objetivos de assistência e solidariedade social; ao patrimônio histórico, artístico e cultural da Igreja e aos lugares de culto. Prevê ainda a liberdade de prestar assistência religiosa e espiritual aos doentes ou pessoas privadas de liberdade e da educação religiosa nas escolas. 

Trata da cooperação da Igreja com o Estado em serviços de saúde e educação, do reconhecimento dos títulos acadêmicos conferidos por instituições eclesiásticas de educação, fora do País, bem como do reconhecimento do casamento religioso com efeito civil e da homologação, pelo Estado, de sentenças matrimoniais de tribunais eclesiásticos, confirmadas pela Santa Sé.

Há dispositivos sobre questões tributárias, sobre a índole própria do sacerdócio católico e do seu exercício, e sobre a identidade própria da vida religiosa consagrada. Trata também do ingresso e da atuação de missionários católicos estrangeiros no Brasil.

Para comemorar o décimo aniversário da assinatura do acordo, será realizado nos dias 12 a 14 deste mês de novembro um importante seminário sobre os vários aspectos e implicações do acordo, promovido pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) em parceria com a Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Campinas. Entre as personalidades eclesiásticas e do âmbito jurídico presentes ao evento, destaca-se o cardeal Lorenzo Baldisseri, núncio apostólico e representante pontifício da Santa Sé junto ao governo brasileiro na época da elaboração e da assinatura do acordo. Seu empenho diplomático foi decisivo para que se chegasse à definição dos termos desse instrumento jurídico internacional entre a Igreja Católica e o Estado brasileiro.

*DOM ODILO P. SCHERER É CARDEAL-ARCEBISPO DE SÃO PAULO